Um ano e sete meses separam o Brasil da eleição presidencial. Mas, para quem almeja concorrer ao Palácio do Planalto, 2021 virou 2022. A reinserção do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no cenário eleitoral limpou o tabuleiro no qual partidos e lideranças políticas jogavam até então uma modorrenta partida de xadrez. Mesmo distante da data do pleito, as peças que serão recolocadas em disputa agora terão de fazer movimentos definitivos. Coube a Lula a primeira ação. Com os direitos políticos restabelecidos após o ministro Edson Fachin, do STF, ter anulado as condenações do petista na Lava-Jato, o ex-presidente convocou jornalistas e correligionários para o ato de maior importância desde o dia em que saiu da prisão. Na quarta 10, Lula falou por aproximadamente duas horas e pouco se referiu aos seus algozes. Embora duras, as menções a Sergio Moro, classificado como o “maior mentiroso da história”, não somaram mais de um minuto. Já o ex-coordenador da força-tarefa da Lava-Jato Deltan Dallagnol só foi citado uma vez nominalmente. “A Lava-Jato desapareceu da minha vida”, jurou o petista. Foi uma completa repaginação, se comparada ao discurso que fez em novembro de 2019, no ABC Paulista, ao deixar a cela onde cumpria pena. Na ocasião, uma versão mais incendiária do ex-presidente disparou ataques contra tudo que ele considerava estar no campo oposto, como o Judiciário, a imprensa e as elites do país. Desta vez, até o cenário montado no 3º andar do prédio do Sindicato dos Metalúrgicos, o berço político de Lula em São Bernardo do Campo, apontava para a mudança de foco do petista. Lá, ele discursou diante de um painel com slogans defendendo a vacinação de toda a população e o pagamento de um auxílio emergencial durante a pandemia.
Eleições 2022
Nesse ato que marcou a inesperada ressurreição política, obtida graças à desastrosa ação de Fachin, sobrou o antigo hábito de Lula de ignorar solenemente os inesquecíveis casos de corrupção dos governos petistas, suas responsabilidades e os benefícios amealhados por ele nesses esquemas (vale lembrar que a sentença de Fachin não anulou nenhuma das provas que ainda pesam contra o ex-presidente). O velho novo Lula também não deixou de fazer críticas ao trabalho dos meios de comunicação ou ao empresariado, mas a disposição para fazer concessões políticas mudou — ao menos no discurso. A fala do ex-presidente deveria ter ocorrido no dia seguinte ao da decisão de Fachin, mas a defesa de Lula pediu a ele que adiasse o pronunciamento em decorrência do julgamento marcado para a Segunda Turma do STF sobre a suspeição de Moro nos processos contra o petista. Como o ministro Nunes Marques pediu vista, Lula se sentiu confortável para discursar sem mexer com os humores da Suprema Corte. Mesmo com o discurso mirando 2022, o recado para os companheiros foi para ninguém já tratar Lula como um postulante à Presidência. Pelo menos publicamente, a ideia da candidatura fica em segundo plano para facilitar a aproximação com partidos não alinhados à esquerda. Lula sinalizou que não terá problemas em conversar com lideranças como o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), que elogiou a fala do petista no Twitter. Também tentará buscar velhos conhecidos do Centrão, como o PSD, de Gilberto Kassab, e o PL, de Valdemar Costa Neto. Dirigentes do partido creem que a popularidade de Lula entre os mais pobres poderá ser um chamariz para atrair os “neoaliados” do presidente Jair Bolsonaro que possuem redutos eleitorais no Nordeste.
Bolsonaro, inclusive, terá a partir de agora um opositor ferrenho ao seu governo. Lula não economizou nos ataques contra a péssima gestão do presidente durante a pandemia e citou por diversas vezes a alta dos preços de produtos de primeira necessidade, como os alimentos, a gasolina e o gás de cozinha. O ex-presidente quer se apoiar a esses pontos para provocar o maior nível de desgaste possível ao governo federal. Ele está incentivando aliados como o ex-prefeito Fernando Haddad (PT), o líder do movimento dos sem-teto Guilherme Boulos (PSOL) e o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), a viajar o país para vocalizar essas insatisfações. “Minha posição desde que acabou a eleição municipal, no ano passado, é de trabalhar por uma unidade do campo progressista”, diz Boulos, que tem resistido a pressões de seu partido para se lançar candidato ao Palácio do Planalto desde que terminou em segundo lugar na disputa pela prefeitura de São Paulo. Quem ficou a ver navios foi Ciro Gomes (PDT). Cada vez mais belicoso, o ex-ministro foi um dos alvos abertos do discurso de Lula. “Ele acha que é o quê? Ele tem de se reeducar”, disse o petista. Carlos Lupi, presidente do PDT, não quis entrar no tiroteio (“não trabalho com adjetivos”), mas reconheceu o óbvio: uma aliança entre ambos é inviável no primeiro turno.
Espaço Político e Liderança
Se já era um desafio criar uma terceira via em meio à polarização entre direita e esquerda no país, agora o ar ficou ainda mais rarefeito para quem deseja ocupar esse espaço político. Além de lideranças fortes em seus redutos, Lula e Bolsonaro devem esboçar movimentos para conquistar eleitores de centro. Para não ficar para trás, o PSDB apressou-se a divulgar nesta semana uma portaria assinada pelo presidente da sigla, Bruno Araújo, que prevê para outubro a realização de prévias com o objetivo de escolher o candidato tucano. Os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), com larga vantagem para o primeiro, são os principais competidores ao posto. “O Lula obriga todos os partidos de centro a conversar de fato”, afirma Araújo. “Se houver mais de duas candidaturas nesse espectro, nossas chances estão matematicamente extintas.” A opinião do dirigente tucano é compartilhada pela cúpula do DEM, que liberou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta para se movimentar em torno de um projeto presidencial. Já o apresentador Luciano Huck (sem partido), que vinha demonstrando empolgação com a possibilidade de concorrer, publicou no Twitter uma indireta a Lula, dizendo que “figurinha repetida não completa álbum”, mas admitiu em conversas com aliados que terá de esperar (ainda mais) para ter uma visão clara do cenário eleitoral. Pessoas próximas a ele comentavam antes da ação tomada por Fachin que era mais provável que Huck continuasse na Globo caso a disputa de 2022 desembocasse para a polarização extrema entre o lulismo e o bolsonarismo. Definitivamente, esse é o cenário posto hoje.
Há muito tempo circula no Palácio do Planalto a informação de que Bolsonaro gostaria de ver Lula na disputa para explorar ao máximo o antagonismo com a esquerda. Ao saber que Fachin havia anulado as condenações de Lula na Lava-Jato, Bolsonaro fez dois breves comentários com assessores palacianos e parlamentares. O primeiro foi uma crítica direcionada ao ministro. O presidente disse que havia um tempo o magistrado, a quem chama de “petista”, vinha proferindo “decisões absurdas”. Depois de criticá-lo, Bolsonaro resumiu em poucas palavras o que acha do seu maior oponente voltar a ser elegível e disputar o pleito de 2022. “Será ótimo. Será a oportunidade de enterrar Lula de uma vez por todas”, disse ele a um aliado. Em 2018, o então deputado do baixo clero aglutinou o sentimento antipetista da sociedade ao se colocar como a única opção para impedir a volta da esquerda ao poder. “O antipetismo continua sendo a força política mais forte do país, mas isso pode mudar”, alerta Idelber Avelar, professor da Universidade Tulane (EUA) e autor do livro Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI. Algumas pesquisas reforçam a ideia de que a candidatura de Lula pode ser mais indigesta do que parece a Bolsonaro. Uma pesquisa do IPEC realizada antes da decisão de Fachin já mostrava que Lula tinha a menor rejeição entre todos os possíveis candidatos. O petista era mal visto por 44% da população, enquanto 56% repudiam Bolsonaro. O potencial de votos de Lula também é maior do que o do atual presidente, sendo 50% contra 38%.
Lula de volta ao Palácio do Planalto
Evidentemente, o caminho para levar Lula de volta ao Palácio do Planalto não será fácil. Um levantamento do Paraná Pesquisas feito nesta semana mostra que os brasileiros estão praticamente divididos em relação a uma eventual candidatura dele à Presidência: 50,4% dizem ser contra, diante de 44,9% que são a favor. Lula ainda terá o desafio de recuperar o terreno perdido em redutos eleitorais que eram dele e hoje não são mais. Há uma parcela do eleitorado que se identificava com o petista mas que migrou para a base bolsonarista devido ao pagamento do auxílio emergencial. O fim do benefício e o agravamento da crise econômica têm feito as taxas de rejeição a Bolsonaro subir novamente no Nordeste e entre os mais pobres, mas não há nenhum indicativo de que essas pessoas retornarão mais uma vez para debaixo do guarda-chuva lulista. “Renda e emprego serão os guias da eleição de 2022, muito mais do que a corrupção ou a defesa da família”, afirma Ricardo Sennes, diretor da consultoria Prospectiva.
No discurso do ex-presidente, além dos casos de corrupção, foram ignorados os seis anos que Dilma Rousseff ficou à frente do Planalto e que terminaram com a crise econômica que arrasou o país. Por mais que haja uma aparente disposição do petista em dialogar com setores da economia, não soaram harmonicamente as declarações de Lula defendendo mais investimentos públicos e contra a independência do Banco Central, o programa de privatizações e a política independente de preços da Petrobras. Uma prova de que, na essência, o novo Lula continua sendo o velho Lula.
Com reportagem de Tatiana Farah e Thiago Bronzatto
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Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729