Quando conquistou a Presidência da República em 2018, Jair Bolsonaro prometeu estabelecer um novo tipo de relação entre o Palácio do Planalto e o Congresso. Em linha com seu discurso eleitoral de rejeição à velha política, o ex-deputado de baixo clero, com sete mandatos parlamentares no currículo, disse que não negociaria com partidos nem com caciques políticos, como faziam seus antecessores, mas com bancadas temáticas, como a ruralista e a evangélica. Assim, argumentava ele, não haveria mais espaço para o fisiologismo, que seria substituído por um debate meritório de propostas. Como se sabe, deu tudo errado. A base ideológica de Bolsonaro no Parlamento não passou de uma minoria ruidosa e tomou um baile dos políticos profissionais de centro. Com dificuldades para aprovar projetos e, mais tarde, diante da possibilidade de enfrentar um processo de impeachment, o presidente se rendeu ao pragmatismo, fechou um acordo com o chamado Centrão e garantiu governabilidade à sua administração. Fez isso sem nenhum resquício de constrangimento, como ficou claro na atual campanha à reeleição, quando afirmou: “Eu sempre fui do Centrão”.
A declaração de Bolsonaro traz o reconhecimento de um casamento feliz. Nas eleições deste ano, a renovação na Câmara foi menor do que em 2018 — dos 513 deputados eleitos, 202 jamais ocuparam a cadeira anteriormente, ou 39% do total. O resultado confirma a força dos partidos que deram sustentação a Bolsonaro — e também a força do PT. Num ambiente político polarizado, os grupos do presidente e de Lula ganharam terreno, mas a vantagem foi maior para os aliados do atual mandatário. Nenhum dos dois lados rivais, no entanto, conseguirá aprovar matérias na próxima legislatura sem a necessidade de negociar com as legendas de centro, que há muito tempo funcionam como o fiel da balança na Câmara. O centro — que abarca o Centrão-raiz de PL, PP e Republicanos, e o centro independente, de MDB, PSD, entre outros — continuará com protagonismo, independentemente de quem seja o presidente eleito no segundo turno. Na prática, a futura Câmara, que hoje se desenha mais bolsonarista, não terá dificuldade para abraçar Lula em 2023 caso o petista vença a eleição. É tudo uma questão de acertar direitinho as bases da parceria.
O grande vencedor da votação foi o PL, a sigla de Bolsonaro. Liderado por Valdemar Costa Neto, um ex-aliado do PT condenado no mensalão, o partido passou de 33 deputados eleitos em 2018 para 99 agora e será a maior bancada da Câmara. Em seus quadros, estarão bolsonaristas notórios, como Eduardo Bolsonaro e Eduardo Pazuello, e veteranos da política com serviços prestados a diferentes governos. Em razão desse desempenho, o PL receberá as maiores fatias na propaganda eleitoral na TV e do fundo eleitoral, que, mantidos os valores atuais, podem render mais de 1 bilhão de reais à legenda. Em Brasília, um ministro chegou a afirmar, em tom de brincadeira, que Valdemar entrou para a lista dos homens mais ricos do país, comparando-o a um grande banqueiro. O PT de Lula manteve a segunda maior bancada. Serão 69 deputados, dezessete a mais do que na eleição passada. Em 2018, São Paulo elegeu oito deputados petistas. Agora, foram onze, mesmo com Lula tendo sido derrotado por Bolsonaro no estado no primeiro turno.
Nos cálculos do analista político Antônio Augusto de Queiroz, que acompanha o Parlamento há trinta anos, as bases fiéis dos dois candidatos à Presidência têm o mesmo tamanho, cerca de 120 deputados cada uma, um pouco mais, um pouco menos. Sobrariam 270 congressistas que se movem conforme a direção do vento. Estes são o centro, grupo que mantém o poder de decidir o futuro das votações na Casa. Lula costuma chamar essa turma de centro democrático, com o objetivo de atraí-la tirando o aspecto pejorativo do termo Centrão. Já Bolsonaro e seus aliados adotaram a alcunha de Centrão mesmo, até porque sabem que o orçamento secreto compensa qualquer nomenclatura utilizada. “Oposição consistente é só isso (120 deputados), seja de um lado, seja de outro. O resto é conveniência e estará com qualquer governo desde que ele faça concessões”, afirma Queiroz. “Os demais, que são potencial base do Bolsonaro, em um eventual governo Lula também passam a ser potencial base do petista, desde que haja negociação. É um grupo pragmático, que vive de patronagem, de apoio e de favores governamentais”, acrescenta. Alguns sinais disso são claros.
O todo-poderoso presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), foi o deputado mais votado por Alagoas e já está de olho no projeto de reeleição para o comando da Casa. No Palácio do Planalto, ministros dizem que Lira será vitorioso e nem terá adversários de peso caso Bolsonaro permaneça na Presidência. Mesmo sabendo disso, Lira jamais fechou as portas para a esquerda. Ele é próximo, por exemplo, do líder petista Reginaldo Lopes, um dos coordenadores da campanha de Lula. Também mantém reuniões com lideranças da oposição na residência oficial e, segundo seus interlocutores, tentará construir pontes caso Lula seja eleito em busca de permanecer no cargo. Um de seus trunfos é ter o centro nas mãos, por defendê-lo na distribuição de cargos e na hora da execução de emendas parlamentares. No caso do Senado, a vitória de Bolsonaro foi mais expressiva. O PL terá a maior bancada e dela farão parte pessoas do círculo mais próximo do presidente, como os ex-ministros Damares Alves e Marcos Pontes.
Até por isso, o presidente, se conseguir a reeleição, quer lançar um candidato para a disputa pelo comando do Senado, na qual o independente Rodrigo Pacheco (PSD) tentará manter o cargo. Três nomes são cogitados: Ciro Nogueira, atual chefe da Casa Civil, e os futuros senadores Tereza Cristina e Rogério Marinho. No Senado, o PT terá nove cadeiras, consolidando-se como a quinta maior bancada. Dentro do partido, a eleição de Wellington Dias, o ex-senador e ex-governador do Piauí e coordenador da campanha de Lula, foi recebida com alívio, já que no estado, apesar de Lula ter angariado 74% dos votos contra Bolsonaro, Dias obteve apenas 4 pontos de diferença sobre o adversário, afilhado político de Ciro Nogueira. Foi um confronto direto entre um atual ministro e um provável futuro ministro.
Criticados por aderirem aos governos de turno em troca de benesses e por protagonizar escândalos de compra e venda de apoio, os partidos de centro costumam se defender alegando que são eles que garantem a aprovação de projetos impopulares, como reformas e textos de modernização do Estado, e impedem pautas de interesse unicamente partidário. Entre elas, a regulação da mídia defendida pelo PT e o voto impresso tentado por Bolsonaro. O argumento é correto. Como também é correta a queixa de que o grupo, por saber de sua força, age muitas vezes em causa própria. Independentemente de quem seja o próximo presidente da República, o Centrão já se articula em duas frentes: manter a verba bilionária do orçamento secreto, mesmo que tenha de seguir certas regras de transparência, e mudar a legislação para destravar a máquina pública, atenuar o teto de gastos e permitir a injeção de mais recursos em redutos eleitorais. Essas prioridades podem enfrentar resistência dos dois favoritos à Presidência.
Lula, aliás, prometeu acabar com o orçamento secreto. Se cumprirá, são outros quinhentos. Já Paulo Guedes, acertadamente, não admite mais concessões no campo do teto de gastos. Se terá força para defender o instrumento, o futuro dirá. O ministro não teve até agora. “O teto está inviabilizado porque todos os candidatos prometeram 600 reais de Auxílio Brasil, e o valor não cabe no teto. Então, ele vai ter de ser flexibilizado de alguma maneira”, diz o deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara. “O Guedes hoje é outra pessoa. Ele aprendeu que o Congresso tem autonomia, tem vontade própria”, arremata. O centro sabe de sua força e não pretende recuar diante de Lula ou Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810