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Grande ideia

Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638

Por J.R. Guzzo Atualizado em 4 jun 2024, 15h58 - Publicado em 7 jun 2019, 07h00
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  • A mais rica cidade do Brasil é atravessada de ponta a ponta, ao longo de quase 25 quilômetros, por um dos mais extensos, perigosos e sinistros esgotos a céu aberto do planeta — o Rio Tietê. Essa fossa, riquíssima em tudo o que pode haver em matéria de coisa podre, de lixo e de tóxicos em seu estado mais agressivo, é confinada entre avenidas gigantes dos dois lados, as célebres “Marginais”, pelas quais passam diariamente cerca de 2 milhões de veículos com toda a emissão de gás carbônico a que têm direito. Um sujeito que cair ali dentro pode perfeitamente não ter tempo de se afogar — corre o risco real de morrer envenenado antes, no meio da pasta química mortal que substitui há décadas a água corrente do rio. Nenhuma forma conhecida de vida sobrevive nesse horror. Isso é só uma parte do problema. Pouco antes de sair do município de São Paulo, em direção à sua foz, 1 100 quilômetros adiante, o Tietê encontra o canal do Rio Pinheiros — outro sério concorrente ao título de Oitava Maravilha da Poluição Urbana do Mundo, negro de imundície e igualmente ladeado por duas avenidas de tráfego insano. Sua única vantagem: é um pouco mais curto que a cloaca irmã.

    Parece claro que existe aí um problema ambiental monstruoso, desses que teriam de ser resolvidos antes de quaisquer outros pelas autoridades e defensores da natureza em qualquer país mais ou menos civilizado — até porque prejudica diretamente os 21 milhões de brasileiros que moram na área metropolitana de São Paulo. Parece, mas não é. Não apenas não é: não passa pela cabeça de ninguém que possa ser assim, entre os milhares de ambientalistas, ecologistas, engenheiros ambientais, naturalistas, indigenistas, procuradores, fiscais e o resto dos burocratas que infestam as repartições de defesa do meio ambiente nos três níveis da administração. Isso sem contar, naturalmente, com as ONGs “do verde”; para essas, então, falar em poluição urbana é praticamente um crime. A única questão ambiental válida, em tal mundo, é o pacote que engloba florestas, cerrados, mangues, ilhas perdidas, fauna, flora, bagres de rio — tudo, em suma, que não inclua o ser humano, salvo se ele for índio. O Rio Tietê que se dane. O que interessa é pegar o cidadão que cortou um pé de gabiroba num sítio perdido em algum fim de mundo, ou exigir prisão inafiançável para o infeliz que matou um macaco-prego no sertão do Ceará.

    “O verdadeiro desastre ambiental do Brasil não está no meio do mato”

    O verdadeiro desastre ambiental do Brasil do século XXI não está no meio do mato, e sim na cara de todo mundo, todos os dias; não afeta sapos ou papagaios, mas mata gente de carne e osso. Centenas de cidades brasileiras com mais de 50 000 habitantes são envenenadas por rios mortos como o Tietê e o Pinheiros. Não menos que 50% da população, ou 100 milhões de pessoas, não dispõe de esgoto. Uns outros 40 milhões, possivelmente, não têm acesso a água tratada de boa qualidade. Há 3 000 lixões em pleno funcionamento em 1 600 cidades pelo país inteiro — aterros ao ar livre onde lixo e detritos de todo tipo são jogados e abandonados, sem tratamento algum. Desde 2014 não deveria mais existir nenhum lixão aberto no Brasil, por exigência da lei; só que há mais lixões hoje do que havia cinco anos atrás. Essas cordilheiras de dejetos contaminam a água, poluem o ar e envenenam o solo. Cerca de 95 milhões de cidadãos, segundo cálculos das empresas de limpeza pública, têm sua saúde e qualidade de vida diretamente prejudicadas pelo descarte do lixo no meio da população em geral.

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    Mas quem é que está ligando para isso, entre os autocratas ambientais? Suas paixões são outras. Em meio aos surtos que vivem tendo, tornou­-se conhecido, recentemente, o bloqueio que o Ministério Público comanda há oito anos contra a construção da linha mestra de transmissão de energia elétrica em Roraima. Como os 350 índios uaimiris — isso mesmo, 350 — que vivem nos 225 000 quilômetros quadrados de Roraima têm objeções ao linhão, o MP vem vetando sistematicamente as obras, desde sua aprovação, em 2011. Com isso, a maior parte do território do estado e seus 500 000 habitantes não recebem um único watt de eletricidade brasileira. São obrigados a depender de fornecimento importado da Venezuela — que hoje não consegue produzir nem papel higiênico, e vive falhando na entrega. Há, agora, um esboço de solução. A população de Roraima reza. O universo ecológico diz que o Brasil deveria, ao mesmo tempo, eliminar seus problemas ambientais urbanos, permitir o progresso e preservar a natureza. Grande ideia. É só executá-la.

     

    Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638

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