Ao fechar, em dezembro de 2016, um acordo de cooperação para delatar crimes em pelo menos doze países e ressarcir 7 bilhões de dólares desviados com corrupção, a Odebrecht tinha um plano claro: reconhecer seus erros, pagar multas e retomar suas operações nos locais onde fincou bandeira — em especial na América Latina, o principal mercado da empreiteira. Na Colômbia, esse objetivo está mais longe de ser alcançado do que em qualquer outro país. A Odebrecht não só fracassou na tentativa de conseguir homologar suas delações premiadas, como também se viu diante de um componente policial inédito que pode ser fatal para suas ambições: a morte de uma testemunha-chave, o auditor colombiano Jorge Enrique Pizano, e de seu filho, Alejandro, em um intervalo de quatro dias. Os novos fatos já produziram reveses para a empresa: a Vice-Presidência da República protocolou na terça-feira 20 um pedido a autoridades para que a empreiteira brasileira deixe de participar de obras públicas no país pelos próximos vinte anos. Na Odebrecht, há o temor de que os últimos episódios dificultem ainda mais a homologação das delações e até sua permanência no país latino-americano.
Pizano foi encontrado morto, em 8 de novembro, em sua casa nos arredores de Bogotá, vítima de um infarto fulminante. Seu filho Alejandro, de 31 anos, arquiteto em Barcelona, viajou à Colômbia para atender ao cortejo fúnebre do pai. Dois dias depois de sua chegada ao país, Alejandro morreu a caminho do hospital, após ingerir água de uma garrafa que estava no escritório de seu pai. Médicos-legistas acharam vestígios de cianureto em seu corpo e foi encontrado um frasco do veneno na casa de seu pai — e, no vidro, havia digitais de Jorge Pizano.
Desde 2010 o auditor era o responsável por analisar os contratos da Ruta del Sol 2, estrada que liga Bogotá à costa do Pacífico, construída por uma concessionária formada pela Odebrecht e pela Corficolombiana, empresa do grupo Aval, o maior conglomerado empresarial do país. Ao tornar público seu acordo de colaboração premiada, a Odebrecht delatou que, dos quase 2 bilhões de dólares gastos na obra, 30 milhões de dólares foram parar nas mãos de políticos colombianos que, reproduzindo a prática que hoje se sabe ser corriqueira no Brasil, cobravam mesadas polpudas e doações de campanha para beneficiar empresas com contratos de obras públicas. Entre os delatados pela empreiteira estão o ex-ministro dos Transportes do governo Uribe, Gabriel García, e o então presidente da Corficolombiana, José Elias Melo. García reconheceu que recebeu 6,5 milhões de dólares em propina da Odebrecht para que a empresa vencesse a licitação da obra e conseguiu o benefício da delação premiada. Já Elias Melo não quis contar o que sabia. Preso preventivamente em 2017, ele hoje se defende em liberdade do crime de corrupção ativa. Delatores da Odebrecht afirmam que, como participante da concessionária, ele sabia dos pagamentos a políticos.
O papel de Pizano, que começou a trabalhar para a Ruta del Sol em 2010, era testemunhar no processo penal que envolve Elias Melo. Sua morte por infarto ocorreu pouco antes de ele concluir os depoimentos à Justiça. O auditor se tratava de um câncer no sistema linfático. Temendo ser abatido pela doença e com receio de terminar ele mesmo acusado no caso da Ruta del Sol, Pizano entregou a um canal de TV colombiano documentos e gravações que buscavam provar sua versão. Em troca, obteve a promessa de que o conteúdo só seria divulgado quando ele não estivesse mais por perto. Desconfiado da Justiça colombiana, tinha como objetivo deixar sua versão lavrada caso precisasse fugir do país ou fosse abatido pelo câncer.
Segundo o material recebido pelo canal, os contratos fictícios usados para “esquentar” a propina foram coletados até 2015, ano em que Pizano decidiu mostrá-los a Nestor Martínez, então assessor jurídico da Corficolombiana e do grupo Aval. Pizano disse que, na época, não tinha certeza de que os documentos estavam relacionados a desvios da corrupção ou se poderiam tratar de pagamentos a grupos paramilitares que atuavam na rodovia como “seguranças” da empresa. Em um dos áudios, Pizano questionou Martínez sobre o que fazer com aquelas informações e ouviu do assessor jurídico que era melhor “ficar quieto”. Martínez também prometeu, segundo um dos áudios, que deixaria o dono do grupo Aval, Luis Carlos Sarmiento, o homem mais rico da Colômbia, ciente de suas descobertas. Em agosto de 2016, poucos meses antes de o acordo da Odebrecht ser firmado com as autoridades do Brasil, dos Estados Unidos e da Suíça, Martínez foi conduzido pelo então presidente colombiano Juan Manuel Santos ao cargo de procurador-geral da Colômbia. No começo de 2017, quando as delações da Odebrecht vieram a público, Martínez anunciou que se afastaria da investigação em decorrência de sua ligação anterior com o grupo Aval.
Desde que a Lava-Jato se estendeu à Colômbia, o grupo Aval negou ter tomado conhecimento ou participado de qualquer ato ilícito. Tal versão foi posta em xeque não só pelos áudios de Pizano, mas também por uma carta publicada em 12 de novembro, logo após a morte do auditor e de seu filho, pelo próprio Martínez, que garantiu ter repassado as descobertas de Pizano ao bilionário Luis Carlos Sarmiento. Exceto o processo contra Elias Melo, não há investigações determinadas pela procuradoria sobre o grupo Aval no escândalo de propinas pagas pela Odebrecht.
No caso da empreiteira brasileira, a situação na Colômbia está cada dia mais complicada. Mesmo que a Justiça tenha usado parte das delações de seus executivos para investigar políticos e empresários no país, a empresa não conseguiu que a Justiça homologasse seus sete acordos de delação, o que incluiria o ressarcimento de 33 milhões de dólares ao Estado colombiano. Sem obras da construtora em andamento no país, se os acordos não vingarem, a permanência da Odebrecht na Colômbia deixa de fazer sentido. Executivos da empresa têm afirmado que os áudios de Pizano fortalecem o que disseram seus delatores, o que, numa situação comum, poderia ser visto como ponto positivo para viabilizar a homologação das delações. Na Colômbia, no entanto, as coisas não parecem obedecer necessariamente à lógica cartesiana. Afinal de contas, num escândalo de corrupção que, além de implicar o topo da classe política e empresarial, envolve a suspeição sobre a atuação do procurador-geral e a morte ainda inexplicável de pelo menos uma testemunha-chave, há pouco espaço para um final feliz.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610