O primeiro caso de corrução no governo Lula ocorreu um ano depois da posse do petista. Um vídeo mostrou o então assessor da Casa Civil, Waldomiro Diniz, pedindo propina a um bicheiro. Na época, ele foi demitido do cargo, mas o episódio foi tratado como um caso isolado. Não era. Algum tempo depois, explodiu o escândalo do mensalão. Para manter a base de apoio no Congresso, o PT subornava parlamentares com dinheiro desviado dos cofres públicos. No comando da fraude, estava o então poderoso ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, braço direito de Lula e ex-chefe de Waldomiro. Com o passar dos anos, outros casos de corrupção pesada eclodiram em vários ministérios, fornecendo evidências de que a prática estava disseminada nos governos petistas. Em 2015, já na administração de Dilma Rousseff, a suspeita se confirmou. A Lava-Jato descobriu que o PT e seus aliados desviaram mais de 42 bilhões de reais para financiar campanhas políticas do partido e multiplicar o patrimônio pessoal de muita gente. A corrupção era um método, um instrumento para garantir a manutenção de um projeto de poder — só o PT não reconhecia isso.
Nos oito anos de governo Lula, Gilberto Carvalho chefiou o gabinete do presidente. Nada — ou quase nada — acontecia no Palácio do Planalto sem que ele tivesse conhecimento. No governo Dilma, ele foi nomeado ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. Servia como os olhos e os ouvidos de Lula, uma espécie de tutor destacado para monitorar a presidente e garantir que ela não se afastasse das políticas de seu antecessor. Hoje, Gilberto Carvalho dirige a Escola Nacional de Formação do PT — e é o primeiro petista graduado a admitir abertamente que houve corrupção nos governos de Lula e Dilma e que petistas se corromperam. Cita os casos de Waldomiro Diniz e José Dirceu como exemplos e acrescenta ao rol Antonio Palocci, o ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de Dilma. “Houve corrupção durante os nossos governos? Claro que houve corrupção em nossos governos. Houve petistas que se corromperam? Houve”, afirmou, em entrevista a VEJA, o ex-chefe de gabinete.
Desde que o avesso do PT foi exposto publicamente, as lideranças do partido sempre assumiram uma postura de absoluto negacionismo sobre o tema. O máximo que se permitiam era admitir que se houve “algo errado” seria culpa do sistema político, que “obrigava” as agremiações a relativizarem determinados princípios em nome de um bem maior. Os petistas, ao invés de culpados, seriam vítimas. É desculpa canhestra. O PT não inventou a corrupção, mas, ao chegar ao poder, descobriu quanto ela tornava as coisas mais fáceis para todos os interessados. Em nome de um projeto, não hesitou em firmar parcerias com criminosos, fragilizou a democracia ao substituir a legítima negociação parlamentar pelo suborno, usou e abusou do dinheiro público para atingir seus objetivos eleitorais e teve seus principais dirigentes condenados e presos por corrupção, mas sempre se negou a assumir sua culpa. Por isso, a autocrítica de Gilberto Carvalho pode ser considerada como um marco, embora ainda parcial.
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O ex-chefe de gabinete reconhece que a corrupção existiu, que petistas se corromperam, mas poupa Lula e transfere boa parte da responsabilidade pelos escândalos a adversários e antigos aliados. “Lula não se corrompeu. Tenho convicção disso”, afirma Carvalho. Principal beneficiado de esquemas como o mensalão e o petrolão, o ex-presidente, de acordo com seu antigo assessor, foi vítima de perseguição. A corrupção na Petrobras, segundo ele, teria começado no governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, e os atores principais dos desvios bilionários não seriam os petistas, mas, sim, os parlamentares do Centrão, o grupo de partidos que deu sustentação parlamentar aos governos Lula e Dilma. “Se você considerar tudo o que houve na Petrobras, nos processos todos, a imensa maioria dos autores desses roubos são aqueles que estão inclusive no governo Bolsonaro. São os mesmos partidos que continuam lá, os do Centrão.”
As declarações de Gilberto Carvalho — admitindo em parte os desvios éticos do PT, responsabilizando os antigos aliados pelos principais malfeitos e preservando Lula — revelam a estratégia que será adotada pelo partido para mitigar o debate sobre corrupção nas próximas eleições. Na avaliação do cientista político Cláudio Couto, da FGV, não dá para fingir que os erros cometidos pelos governos Lula e Dilma não existiram. A autocrítica, mais do que uma artimanha política, é necessária para tentar dissipar a resistência ao partido, em uma eleição que ainda deve ser marcada por forte sentimento antipetista. “O Lula vai ser desta vez o anti-Bolsonaro, assim como o Bolsonaro foi o anti-Lula em 2018. Tem gente que, mesmo horrorizada com o Bolsonaro, ainda desconfia muito do PT”, compara Couto.
Pesquisa Datafolha divulgada no mês passado mostra o petista liderando a corrida pelo Planalto com 41% das intenções de voto no primeiro turno, enquanto Bolsonaro aparece com apenas 23%. Os dois, no entanto, enfrentam um altíssimo índice de rejeição. Para inverter essa tendência, o PT quer imunizar Lula contra as acusações de corrupção, o que não será uma tarefa simples. Na terça-feira 22, como parte dessa estratégia, o ex-presidente divulgou um vídeo em que atribuiu sua condenação a uma suposta conspirata que teria a participação do Ministério Público, da Polícia Federal, da Justiça, da imprensa e até do governo dos Estados Unidos. “É como se fosse uma quadrilha montada”, disse o ex-presidente.
Em paralelo, há outros fantasmas que precisarão ser exorcizados até o início da campanha de 2022. O fracasso da gestão econômica e a turbulência política durante as administrações petistas ainda estão presentes na memória de muitos eleitores. “É preciso que o partido também faça uma autocrítica em relação aos erros econômicos do governo Dilma, além de mostrar propostas para os problemas concretos que se apresentam hoje”, ressalta Couto. Gilberto Carvalho, é verdade, deu um primeiro passo. Mas ainda falta muito para que o PT reconheça sinceramente seus equívocos, proponha mudanças autênticas de procedimento e um caminho de prosperidade para o Brasil. Até aqui, o que se desenha é a luta de dois projetos retrógrados, cada um com seus pecados.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744