Reflexo da obsessão do presidente Jair Bolsonaro em armar a população, o arsenal em poder de cidadãos comuns passa por uma escalada jamais vista na história do Brasil. Os registros na Polícia Federal mais que triplicaram sob o novo governo. Em 2018, na era Michel Temer, foram dadas 51 027 autorizações a civis, número que foi a 94 064 no primeiro ano do bolsonarismo e atingiu 177 782 em 2020. Somente nos seis primeiros meses deste ano já foram 97 243, o que mostra que o fenômeno continua. Embora tenha ocorrido de forma geral no país, a alta foi maior nas regiões Norte e Centro-Oeste. Estados como Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul destacam-se nesse ranking (veja o quadro abaixo).
Fator de preocupação adicional dentro dessa política bélica bolsonarista, essas são áreas que já figuram como líderes em conflitos armados no país, devido a problemas como o acirramento das disputas por terras e a pressão exploratória por recursos naturais. Áreas indígenas costumam estar no epicentro de muitos desses conflitos e a polêmica sobre os direitos desses povos só vem aumentando e chegou a um ponto de grande tensão. Encontra-se em análise no Supremo Tribunal Federal o marco temporal que fixa que indígenas só podem reivindicar terras já ocupadas antes da Constituição de 1988 — o julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Uma eventual mudança tem potencial de agravar ainda mais as brigas já frequentes, dentro de um cenário de enorme deterioração dos órgãos de controle e fiscalização que ocorre neste governo. “Onde as instituições não chegam, o que vale é a lei do mais forte”, afirma o economista e técnico do Ipea Daniel Cerqueira.
No discurso que entoa desde antes da eleição, Bolsonaro reserva um lugar especial para o armamento de quem vive no campo. Ele permitiu, por exemplo, aos fazendeiros andarem armados em toda a propriedade, e não apenas na sede, como antes. A política ganhou até uma ilustração no dia 28 de julho, quando, a pretexto de comemorar o Dia do Agricultor, a Presidência da República divulgou uma mensagem com a imagem de um homem portando uma espingarda em meio a uma plantação — o material foi apagado horas depois sob o argumento de que ele fazia “referência à segurança no campo”, mas deu “margem a interpretações fora do contexto”. De acordo com Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a lógica do “cada um por si” é a mensagem incutida hoje pelo governo no coração e mente dos brasileiros, o que pode transformar em um barril de pólvora as muitas pendengas fundiárias do país. “O Brasil corre o risco de caminhar 100 anos para trás, onde nós tínhamos territórios tomados por jagunços”, afirma Marques.
O alerta parece um pouco exagerado, mas encontra eco na própria PF. Segundo o delegado Pedro Ivo, titular da Delegacia de Controle de Armas e Produtos Químicos do Tocantins, é para as mãos de produtores rurais que a maioria das armas está indo. “Elas viraram a segunda paixão nacional depois do futebol”, ironiza. Segundo ele, tanto o pequeno produtor quanto o latifundiário estão montando pequenos arsenais, com a diferença de que o segundo cria uma estrutura interna de segurança para defender a propriedade. A flexibilização de normas foi o principal motivo para deixar a PF de mãos atadas diante da demanda. “Não temos mais a discricionariedade (liberdade de ação administrativa) de exigir que o indivíduo comprove que ele tem a prerrogativa de ter arma”, completa Ivo.
No bolsonarismo, claro, a visão é outra. “É a forma que nós temos para ter o nosso patrimônio protegido onde o Estado não consegue se fazer presente”, alega o deputado Nelson Barbudo (PSL-MT), o mais votado no estado, um proprietário rural que já foi alvo do Ministério Público após ameaçar invadir a terra indígena Marãiwatsédé e devolvê-la a agricultores retirados no governo Dilma Rousseff, em 2012. Outro defensor da flexibilização, o deputado José Medeiros (Podemos-MT) argumenta que é preciso se proteger de ladrões. “Não tem como tratar da mesma forma quem mora na Avenida Paulista e quem mora no interior de Mato Grosso. Tem regiões em que a delegacia mais próxima fica a 200 quilômetros”, alega. Por ora, o aumento do arsenal não correspondeu a uma alta da violência, mas especialistas temem o efeito a longo prazo. “As novas armas tendem a ficar em circulação por cinquenta a sessenta anos”, ressalva Ivan Marques.
As portas para essa política vêm sendo abertas por Bolsonaro desde os primeiros dias de sua gestão. Ao colocar o assunto como prioridade, o presidente foi enfileirando uma sucessão de decretos, portarias, medidas provisórias e outros instrumentos legais que simplificaram o processo para a aquisição. Entre os mais de trinta atos que o atual governo editou estão o aumento de duas para seis armas para cada cidadão, o afrouxamento do limite para munições e até a autorização para que indivíduos possam circular com duas armas na cintura (o limite era uma). Também retirou do controle do Exército itens como os pentes de munição e as miras telescópicas, além de revogar medidas que permitem rastrear a produção caseira de projéteis.
A ladainha em defesa de armas não é uma invenção de Bolsonaro nem da direita brasileira. O tema é central para esse espectro ideológico em qualquer lugar do mundo, em especial nos Estados Unidos. Lá, a ideia de que o cidadão tem direito à autodefesa está expressa na segunda emenda da Constituição, de 1791 — ela tem origem nos minutemen, como eram chamados, pela rapidez com que se colocavam para o combate, os colonos que formaram brigadas para lutar pela independência. Não por acaso, os bolsonaristas vivem citando os Estados Unidos como sua inspiração no assunto.
Para o presidente, o tema ajuda a mobilizar a militância radical. Na célebre reunião ministerial de abril de 2020, ele justificou a insistência no assunto com uma teoria conspiratória: “É por isso que eu quero que o povo se arme! É a garantia de que não vai ter um ‘fdp’ para aparecer e impor uma ditadura aqui”. Uma estimativa dos institutos Sou da Paz e Igarapé mostra que no fim do ano passado havia 1,15 milhão de armas nas mãos de cidadãos, quase o dobro das 629 000 em poder das Polícias Militares. “Isso pode acabar gerando milícias favoráveis ao governo. É muito ruim do ponto de vista da democracia”, diz o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper.
Essa sanha armamentista, porém, pode sofrer um revés. O STF iniciou um julgamento com potencial para derrubar de vez quatro decretos, cuja eficácia já foi suspensa por liminar da ministra Rosa Weber. Seu voto foi referendado por Moraes e Edson Fachin, mas, na sexta 17, Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, pediu vista e parou o processo. Cedo ou tarde, porém, a Suprema Corte vai retomar o assunto, sendo que a maioria dos integrantes é contrária à política bélica. Para um governo que gastou enorme energia para fazer do armamento da população uma de suas pouco bem-sucedidas políticas públicas, será um verdadeiro tiro no pé.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757