Logo no início de sua gestão, o comportamento de Jair Bolsonaro produziu um efeito incidental: a união dos governadores do Nordeste como forma de reagir de maneira coordenada ao que viam como má vontade do Palácio do Planalto com a região, onde o capitão foi derrotado em todos os nove estados no primeiro e no segundo turno da eleição de 2018. O Consórcio Nordeste, criado em março de 2019, deu assim forma institucional ao principal reduto de oposição ao governo federal. O passo, no entanto, foi um desdobramento quase natural do processo pelo qual a região vinha passando desde a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, em 2003: a tomada dos governos estaduais por políticos de esquerda e centro-esquerda. Eles transformaram a área em uma espécie de “fortaleza vermelha” na geopolítica nacional e, portanto, um foco óbvio de resistência ao presidente. A cidadela, porém, corre risco para 2022.
Há vários obstáculos no horizonte para que as forças políticas que produziram esse domínio consigam repetir o sucesso. O principal deles é que, dos nove governadores, sete não poderão disputar a reeleição pois já estão no segundo mandato. Entre eles estão alguns dos mais bem avaliados do país, como Rui Costa (PT), na Bahia; Flávio Dino (PSB), no Maranhão; Camilo Santana (PT), no Ceará; e Renan Filho (MDB), em Alagoas. Tentarão renovar o mandato apenas Fátima Bezerra (PT), no Rio Grande do Norte, e João Azevêdo (eleito pelo PSB e hoje no Cidadania), na Paraíba.
O sinal de alerta vermelho acendeu de vez diante da possibilidade do fim antecipado da atual temporada de poder. Caso queiram disputar outros cargos, os sete governadores de esquerda terão de renunciar até 2 de abril, ou seja, têm pouco mais de três meses de mandato pela frente e não estarão no comando das máquinas durante o processo eleitoral. Em boa parte dos casos, dada as complexas alianças que os elegeram, eles deixarão o estado nas mãos de gente que nem é exatamente do mesmo espectro político. No Maranhão, Flávio Dino vai entregar o cargo ao tucano Carlos Brandão, seu vice. Na Bahia, Rui Costa tem como sucessor João Leão, que é do PP, um dos alicerces do Centrão. Por fim, no Ceará, Camilo Santana será substituído pela vice Izolda Cela, do PDT, partido do presidenciável Ciro Gomes, que é rival do petismo em nível nacional.
Um terceiro problema é a sinuca de bico na qual se transformaram essas alianças locais. Um bom exemplo é o Maranhão, onde Flávio Dino reelegeu-se em primeiro turno sustentado por uma frente de dezesseis legendas que ia do PCdoB (seu antigo partido) ao DEM. O problema agora é definir quem vai suceder a ele, já que o grupo tem quatro pré-candidatos, nenhum de seu partido: o vice Carlos Brandão, o senador Weverton Rocha (PDT) e os secretários Felipe Camarão (PT) e Simplício Araújo (Solidariedade). O governador chegou a anunciar apoio ao vice tucano, mas deixou para janeiro a definição, em busca da unidade de seu grupo. Embora Dino trabalhe pela candidatura de Lula no plano nacional e participe das costuras que podem levar o PSB à chapa petista, a situação coloca em risco a formação de um palanque para o ex-presidente, já que o PSDB de Brandão terá João Doria na disputa ao Planalto, e o PDT de Weverton concorrerá com Ciro.
Outra operação complexa ocorre no Ceará. O petista Camilo Santana deve encaminhar apoio a um candidato do PDT, seu antigo aliado — o favorito é o ex-prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio. Mas a solução desagrada a Lula e a uma ala do PT no estado, que defende candidatura própria. Enquanto o PT não se entende, o ex-senador Eunício Oliveira conta com a simpatia de Lula a uma composição com o seu MDB para ser candidato. “Se o PT do Ceará entender que deve ter um palanque puro para o Lula, eu me coloco à disposição”, afirma.
Em alguns estados, a dificuldade para selar um acordo para 2022 pode fazer até com que o governador desista de disputar qualquer eleição e permaneça no cargo. É o caso da Bahia, onde Rui Costa pode declinar da candidatura ao Senado para permitir a reeleição de Otto Alencar (PSD), aliado do petismo. Outra consequência seria evitar a posse do vice João Leão e sua eventual entrada na disputa ao governo. Por ali, há um grande risco para o PT manter o poder, que ocupa desde 2007, quando Jaques Wagner derrotou Paulo Souto (PFL) e enterrou o carlismo. Agora, segundo o Paraná Pesquisas, ACM Neto (DEM) tem mais de 30 pontos de vantagem sobre Wagner, que tenta retornar ao Palácio de Ondina. Por isso, é fundamental para o PT manter a aliança que sustenta o governo. Outro que pode ficar até o fim do mandato em razão da complexidade que se desenha para o próximo ano é Renan Filho, que não tem vice (Luciano Barbosa elegeu-se prefeito de Arapiraca em 2020) — há temor de que o governo vá parar nas mãos de um rival.
Maior cabo eleitoral da região, Lula terá um papel preponderante na manutenção (ou não) do Nordeste como zona vermelha. A simples presença do nome do ex-presidente ao lado dos candidatos ao governo é capaz de turbinar as intenções de voto. Na Bahia, Wagner vê seu porcentual saltar de 23,1% para 36,8% quando o seu nome é associado ao do petista. Parte do capital eleitoral de Lula vem da identificação com a região — nascido em Garanhuns (PE), migrou com a família para São Paulo em busca de melhores condições —, mas também devido às políticas sociais implantadas em seu governo. O Nordeste concentrou metade dos beneficiários do Bolsa Família, a principal vitrine petista nessa área. “A partir de 2002 ocorre uma votação crescente no lulismo na região e isso permaneceu inclusive em seu pior momento, que foi o período da Lava-Jato”, lembra o cientista político Adriano Oliveira, da Universidade Federal de Pernambuco. Segundo a última pesquisa Datafolha, Lula tem 61% das intenções de voto entre os nordestinos.
Em meio às incertezas que marcam o futuro da esquerda no Nordeste, a ausência até aqui de adversários competitivos serve de certo alento. Alguns presidenciáveis, como João Doria (PSDB) e Sergio Moro (Podemos), têm pouca influência na região — apesar de o ex-juiz já ter até posado com o indefectível chapéu de couro nordestino em recente passagem por lá. Ciro tem influência restrita ao Ceará. Já Bolsonaro é um cabo antieleitoral, com rejeição de 61%, segundo pesquisa Quaest de dezembro. Além disso, com exceção do ministro João Roma (Republicanos), que concorrerá ao governo da Bahia, o presidente não tem palanque de peso para subir, mesmo sendo aliado do Centrão, que possui influência na região. Para tentar reverter o quadro, Bolsonaro vai se valer do mesmo recurso que Lula: o Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família, pago a partir deste mês. O complicado xadrez eleitoral do Nordeste, com as peças vermelhas correndo risco, terá ainda muitos lances decisivos nas disputas estaduais em 2022 e um peso considerável na corrida ao Palácio do Planalto.
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Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2021, edição nº 2768