Até aqui o plano parecia estar dando certo. Mesmo sem demonstrar total alinhamento político com o bolsonarismo, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), havia se tornado a principal, se não a única, opção dos eleitores do ex-presidente para evitar a vitória do deputado Guilherme Boulos (PSOL), o nome escolhido por Lula para representar a esquerda na corrida pelo comando da maior cidade do país. Apesar de manter uma relação distante e marcada pela desconfiança mútua com Jair Bolsonaro e seus filhos, o emedebista comemorava o fato de ter impedido o PL — e demais partidos da direita — de lançar alternativa a seu nome, o que lhe permitiu subir de forma constante nas pesquisas. Nos últimos dias, no entanto, um obstáculo inesperado surgiu no meio do caminho, com a entrada na disputa de um outsider, o coach Pablo Marçal (PRTB). Decidido a pleitear o voto bolsonarista, ele tem potencial de dividir o eleitorado da direita na eleição paulistana, o que pode complicar a vida de Nunes daqui em diante.
A preocupação não é gratuita. As primeiras sondagens com Marçal entre os pré-candidatos confirmam Boulos e Nunes na liderança, empatados tecnicamente. No cenário mais completo do Datafolha, o candidato do PSOL tem um ponto a mais que o prefeito (veja o quadro). A novidade ficou com o desempenho de Marçal, que já empata tecnicamente com a deputada Tabata Amaral (PSB), o apresentador José Luiz Datena (PSDB) e o deputado Kim Kataguiri (União Brasil). Em outra pesquisa, a da AtlasIntel, o coach chega a 10,4% das intenções de voto.
Na última quarta, 5, o pré-candidato, que fez fama e fortuna vendendo cursos de autoajuda pela internet, causou rebuliço na Câmara dos Deputados ao acompanhar a sessão do Conselho de Ética que livrou o deputado André Janones (Avante-MG), suspeito de praticar rachadinha em seu gabinete, do risco de cassação, com relatório favorável de Boulos. Em 2022, Marçal tentou disputar a Presidência da República, mas teve a sua candidatura barrada pelo Pros — que preferiu apoiar Lula — e chegou a ser eleito deputado por São Paulo, com 243 037 votos, mas teve o mandato cassado por irregularidades no registro da candidatura. Com 10,6 milhões de seguidores somente no Instagram, o coach aposta no alcance das redes para crescer e incomodar ainda mais, mesmo que à base de polêmica. Ele é um dos alvos da Advocacia-Geral da União por supostamente espalhar notícias falsas sobre a tragédia no Rio Grande do Sul. “Ele começou relativamente bem, mas ainda é cedo para dizer que há uma tendência de crescimento. Vamos ter de avaliar as próximas pesquisas para saber se o voto dado a ele vem da direita ou da internet”, afirma o diretor do instituto Paraná Pesquisas, Murilo Hidalgo.
Um trunfo que o novo desafiante tem em mãos é que ele pediu votos em Bolsonaro quando foi candidato a deputado em 2022, o que acredita que pode fazer a diferença entre eleitores do ex-presidente. Na terça, 4, se encontrou com o capitão em Brasília. “Sou o único com quem ele tem um pouco de afinidade. Não tem como Bolsonaro apoiar um candidato cujo partido é da base do Lula”, afirma Marçal, numa alfinetada a Nunes. Na sequência, em meio à repercussão disso, Bolsonaro mandou mensagem a Nunes reafirmando que apoia a reeleição do emedebista.
A proximidade entre o ex-mandatário e o prefeito ocorre mais por conveniência de ambos do que por grandes afinidades políticas. A pessoas próximas, Nunes disse que já ouviu de Bolsonaro que o ex-presidente lhe daria apoio para vencer a esquerda em São Paulo. Apesar disso, o capitão nunca fez acenos públicos na direção do prefeito, que é também cuidadoso nas declarações favoráveis a ele. E não por acaso. Em maio, o Datafolha mostrou que 61% dos paulistanos dizem rejeitar votar em um candidato apoiado por Bolsonaro, contra 45% que dizem o mesmo em relação a um indicado por Lula.
São números que explicam, por exemplo, a participação discreta do prefeito no ato político em apoio ao ex-presidente ocorrido na Avenida Paulista, em fevereiro. Ele foi — e vestido de verde-amarelo —, mas não discursou e quase nem foi visto. Os dois, no entanto, combinam nas críticas feitas a Boulos, chamado por ambos de “invasor”, em referência a seu ativismo no Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, e classificado como um risco a ser evitado tanto no âmbito municipal quanto no federal, tendo em vista a proximidade do deputado com o presidente Lula. A avaliação conjunta é que, para derrotá-lo, é preciso uma união das forças da centro-direita com vistas também à corrida nacional em 2026, que Bolsonaro ainda sonha em disputar, apesar de declarado inelegível pela Justiça.
Em troca do apoio a Nunes, Bolsonaro quer emplacar o vice do prefeito na campanha. Sua escolha recaiu sobre o coronel da PM Ricardo Mello, ex-comandante da Rota que já deu declarações polêmicas ao defender “abordagens diferentes” da polícia para moradores da periferia e de bairros nobres da capital paulista. Nunes não morre de amores por Mello e tenta adiar ao máximo a definição do seu companheiro de chapa. Um nome sempre citado para marchar ao lado de Nunes é o da vereadora Sonaira Fernandes (PL), ex-secretária da Mulher do estado. Insatisfeitos com a hesitação do prefeito em abraçar de bate-pronto a indicação de Bolsonaro, auxiliares importantes no entorno do ex-presidente vêm dando discretamente força nos bastidores à pretensão eleitoral do coach Marçal, como forma de fazer Nunes aceitar o coronel Mello.
O movimento abriu de vez a porta das queixas entre os dez partidos da base de apoio, todos eles com pretensão de barganhar o apoio em troca de influência na atual e na próxima gestão, em caso de vitória. Aliados têm reclamado de pedidos negados pelo prefeito desde que começou a subir nas pesquisas. Integrantes do PL, o partido de Bolsonaro, por sua vez, já negociam maior participação em um eventual segundo mandato. Hoje, a legenda comanda apenas a Secretaria do Verde e Meio Ambiente, cujo orçamento é bem modesto.
Além de contornar os pleitos por cargos e poder, Nunes terá de decidir se, a partir de agora, vai caminhar mais à direita no discurso e acenar de forma mais clara a pautas bolsonaristas. Na semana passada, por exemplo, o prefeito participou da Marcha para Jesus, em São Paulo, e declarou que vai aderir ao projeto das escolas cívico-militares sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), cujo apoio também é tido como essencial. A proposta é criticada por Boulos e Tabata, que cada vez mais associam o prefeito ao ex-presidente como estratégia eleitoral. Apesar de pesquisa recente do Datafolha ter mostrado que o morador de São Paulo se identifica politicamente mais com a direita do que com a esquerda, em 2022, tanto Lula quanto o candidato petista ao governo, Fernando Haddad, venceram na capital do estado.
A atual disputa eleitoral paulistana conta ainda nesta fase com postulantes como José Luiz Datena e Kim Kataguiri, mas as apostas são de que ambos vão cair fora do tabuleiro eleitoral. Embora Marçal diga que não irá desistir da candidatura, muitos acreditam numa composição dele lá na frente com a chapa de Nunes. O que não deve mudar é o tamanho do desafio do prefeito, que está em sua primeira disputa como cabeça de chapa — era vice de Bruno Covas (PSDB), morto em maio de 2021. Para Nunes, Jair Bolsonaro é como o sol: não convém se aproximar demais, sob risco de graves queimaduras, nem tampouco ficar muito longe, pois precisa da energia da direita emanada pelo ex-presidente para manter as chances de vitória.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896