Em seu retorno ao Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou para trazer de volta aos círculos do poder vários petistas graúdos que, após os anos dourados dos governos do PT, andavam em considerável ostracismo. Exemplo disso foi a indicação da ex-presidente Dilma Rousseff para comandar, na China, o Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como banco dos Brics. Em meio a essa farta lista de políticos ressurgidos das cinzas, no entanto, o que chama mais atenção é o caso de Aloizio Mercadante, o integrante da turma de “reabilitados” que acumula hoje mais poder no novo governo e, não satisfeito, tem claramente um projeto de expansão territorial.
A carreira dele parecia enterrada de vez depois de sua participação na desastrada tentativa de barrar o processo de impeachment de Dilma e de sua atuação como conselheiro na catastrófica gestão econômica da ex-presidente. Eis que Mercadante está de volta, com um status que surpreende até os petistas mais graúdos: figura no hoje reduzido grupo de pessoas mais próximas ao presidente e, à frente do BNDES, escalou uma equipe com status de ministério paralelo ao da Fazenda, o que esquentou nos bastidores boatos de que seu próximo passo é tentar ocupar o espaço de Fernando Haddad como o grande czar da área. “Mercadante tem ambição de ganhar mais poder”, afirma um dos colaboradores mais próximos a Lula.
Dentro desse novo capítulo da antiga tradição autofágica do PT, os movimentos políticos de Mercadante sobre Haddad são cada vez mais nítidos. No gesto mais recente e simbólico, o presidente do BNDES anunciou que promoverá um seminário para discutir, em março, sugestões de formatação da nova âncora fiscal, entre outros temas. A proposta vitoriosa do evento seria, então, apresentada ao chefe Lula. Como se sabe, a missão de elaborar a tal âncora em substituição ao finado teto de gastos é atribuição de Haddad, que previa, inicialmente, entregar um estudo da Fazenda ao governo e ao mercado em abril. Coincidentemente ou não, Haddad anunciou na última quarta, 15, que decidiu acelerar o envio do projeto da nova âncora — estudado há dois meses pela equipe econômica — para março.
Sem muita convicção, os petistas tentam agora colocar panos quentes na situação. Não foi suficiente para acabar com o mal-estar. “O BNDES está entrando no assunto da Fazenda. A ideia do grupo de economistas em dar sugestões não tem nada demais, desde que fique claro que a responsabilidade é do Ministério”, diz Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda de Michel Temer e presidente do BC nos anos Lula. Formulador do teto de gastos no governo Temer, Meirelles lembra que o mecanismo, em sua elaboração, já previa a necessidade de revisões com o passar dos anos, e defende a urgência. “A âncora fiscal é necessária para colocar limites no crescimento de despesas, porque quanto mais o governo gasta, mais alta fica a questão de juros e gera também mais inflação. E não adianta fazer âncora baseada em coisas que o governo não controla, como meta de superávit”, completa.
Inegavelmente, a confusão provocada pelo seminário de Mercadante põe ainda mais pressão no já bastante pressionado Haddad. O ministro da Fazenda vem se equilibrando na corda bamba entre as intenções mais radicais de Lula e o bom senso exigido na condução da economia, agindo como bombeiro em episódios como o recente ataque do presidente à gestão do BC e sendo, por tabela, alvo de fritura por parte dos colegas no núcleo duro do presidente da República. Nesse contexto, o fogo amigo de Mercadante não poderia vir em pior momento. O simpósio do chefe do BNDES, inclusive, tem respaldo de André Lara Resende, cofundador do Plano Real. Convidado para chefiar o Ministério do Planejamento do atual governo — oferta por ele declinada —, o economista tem endossado a cruzada de Lula contra Roberto Campos Neto, com críticas ferozes à política de juros fixada pelo Banco Central. O discurso não poderia estar mais alinhado às promessas desenvolvimentistas de Mercadante. “O novo BNDES vai ser industrializante e vai buscar projetos estruturantes e industrializantes (…) vai ser transparente, mas vai ser defendido pelo papel histórico e decisivo no futuro do Brasil. O BNDES voltou e vai voltar com muita força para a agenda do desenvolvimento”, disse ele após a cerimônia de posse no banco.
Com apoio nos bastidores e no partido, Mercadante tem agido em sintonia absoluta com a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Desde a época da Lava-Jato, ela passou a ganhar crescente poder ao ter acesso ao seleto grupo de Lula. A uma pessoa próxima, Haddad já confidenciou que Gleisi não gosta dele. A impressão parece correta. A dupla Gleisi-Mercadante criou a primeira saia justa para Haddad contrariando-o na questão da prorrogação da desoneração dos impostos federais sobre produtos como o combustível. Haddad havia defendido a volta da cobrança. No entanto, ao ser interpelado pela dupla, afirmam interlocutores, Lula decidiu assinar a medida provisória que manteve a desoneração dos combustíveis, sob um alegado risco de possível greve de caminhoneiros no seu primeiro mês de governo. Nos últimos dias, mesmo com acenos de bandeira de paz do ministro da Fazenda em direção ao BC e vice-versa, Gleisi continuou batendo forte na autoridade monetária.
Em certa medida, o protagonismo atual de Mercadante é surpreendente. Tido sempre como um dos grandes quadros do PT, com projeção e votações expressivas nas disputas à Câmara e ao Senado, ele, no entanto, nunca conseguiu alçar voos mais altos ao tentar cargos executivos. Em 2006, quando era candidato ao governo de São Paulo, viu respingar em si o chamado “Escândalo dos Aloprados”. À época, integrantes do PT foram presos após acusações de terem encomendado um falso dossiê contra José Serra (PSDB), concorrente de Mercadante ao Palácio dos Bandeirantes. O esquema arquitetado pelos petistas — referido por Serra como “Kit PT de baixaria” — minou não apenas a candidatura de Mercadante, que acabou vencido pelo tucano, mas causou considerável desgaste no então governo Lula, já abalado pelo escândalo do mensalão.
Com a chegada de Dilma ao Palácio do Planalto, Mercadante assumiu o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Em 2012, foi ocupar a vaga deixada por seu agora quase rival, Fernando Haddad, no Ministério da Educação, que ficara aberta com a saída do titular para disputar a prefeitura de São Paulo. Dois anos depois, tornou-se o principal coordenador político de Dilma à frente da Casa Civil. Após o impeachment, acabou sendo deslocado para a Fundação Perseu Abramo, um posto sem brilho algum, até ser recuperado por Lula na última campanha. Terminadas as eleições, novo aceno do chefe ocorreu com a escolha de Mercadante para chefiar a equipe de transição. A reabilitação ficou completa com a cadeira de comando do BNDES. Para além da fidelidade que Mercadante devota ao líder petista, ele tem a seu favor fazer parte do restrito núcleo que não foi cancelado pelas denúncias de corrupção dos últimos anos. O único caso em que era citado, relativo a uma suposta tentativa de interferir nas investigações da Lava-Jato, foi arquivado. Nesse processo que culminou na volta por cima, Mercadante sentiu-se suficientemente empoderado para acender a faísca que detonou a política do fogo amigo, inaugurando a primeira grande intriga dentro do recém-iniciado governo de Lula.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829