Nas últimas eleições, Sonia Guajajara foi candidata a vice-presidente da República na chapa encabeçada por Guilherme Boulos, ambos do PSOL. A dupla teve pouco mais de 600 000 votos, mas a experiência consolidou a certeza de que os problemas dos indígenas brasileiros têm tudo a ver com a política. Para ela, derrotar Jair Bolsonaro e sua “agenda de morte e destruição” nas eleições de outubro é imprescindível. “Nós não aguentamos mais as dragas do garimpo ilegal sugando crianças”, disse ela, se referindo a dois ianomâmis que morreram em um acidente supostamente causado pela exploração mineral clandestina em territórios que deveriam ser protegidos pelo Estado. Para Raimundo Guajajara, presidente do Conselho Supremo de Caciques Indígenas do Brasil, a realidade é a mesma, mas a solução pode ser diferente. “Para acabar com a disputa com os garimpeiros é preciso regularizar a situação dos garimpos, criar normas rígidas de mineração. É muito fácil querer apenas que o índio fique isolado”, ressalta ele, pré-candidato a deputado estadual em 2018 pelo PROS do Maranhão.
Sonia e Raimundo, além de primos, concordam que a política é o único meio capaz de dar respostas rápidas às questões que afligem boa parte dos cerca de 1 milhão de indígenas brasileiros e que, para isso, é necessário que se eleja uma numerosa bancada de representantes no Congresso, assim como existe a dos ruralistas, dos evangélicos ou da saúde. A convergência, porém, termina aí. Sonia, que pretende disputar uma vaga de deputada pelo PSOL, é coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e foi listada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Ela é apoiadora do ex-presidente Lula e recentemente entregou ao petista um documento com propostas para embasar o programa de governo do candidato. Nele, constam compromissos com a demarcação de terras e a retirada de garimpeiros e madeireiros das áreas protegidas. Lula prometeu criar um ministério exclusivamente para cuidar das questões indígenas. Raimundo, por sua vez, é eleitor de Jair Bolsonaro e defende os direitos dos povos indígenas de decidirem o que fazer dentro de suas terras — do garimpo à agricultura.
De dentro da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, palco de uma histórica disputa de terras entre arrozeiros e povos locais, Irisnaide Macuxi, presidente da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima, filiada ao PL do notório Valdemar Costa Neto, vai disputar uma cadeira de deputada e se declara uma legítima apoiadora de Jair Bolsonaro entre um grupo étnico que, à primeira vista, pouco se identificaria com a retórica antiambientalista do capitão reformado. Bolsonaro é conhecido pela posição refratária à questão indígena — já os chamou de “massa de manobra”, lamentou, quando ainda era deputado, que a colonização não exterminou todos eles e frequentemente os aponta como entrave para o avanço do agronegócio — mas Irisnaide afirma que mesmo entre os povos originários há, como ela, ferrenhos defensores do presidente. “Bolsonaro esteve aqui e pediu apoio. Os indígenas votaram nele e ele foi eleito. Agora cobramos e temos sido atendidos. Precisávamos de condições de produção que diminuíssem as multas ambientais e conseguimos”, diz.
Condecorada por Bolsonaro, ela defende o amplo desenvolvimento, produção agrícola e garimpo dentro das aldeias, além de debates menos engessados sobre exploração das terras, florestas e rios. É uma crítica dirigida às posições da principal adversária no estado. Desde o xavante Juruna, eleito deputado federal na década de 80, a única representante indígena no Congresso é Joênia Wapichana (Rede-RR), candidata à reeleição. Ela se define como militante das causas de esquerda e é apoiadora do ex-presidente Lula.
Na última eleição, a Justiça Eleitoral registrou crescimento de 56% de candidatos que se declararam indígenas, embora a representação de tribos no Parlamento ainda seja residual. “Nas eleições de 2022, os povos indígenas estão divididos em duas correntes, uma que enfatiza a pauta econômica, privilegiando o desenvolvimentismo, a agricultura, pecuária e atividades ligadas ao garimpo, e outra que apoia políticas de demarcação, além de uma agenda em que o índio é preservado sob todos os aspectos”, afirma o cientista político da Universidade de Brasília Paulo Kramer. Apesar das divergências, as lideranças sonham com uma bancada de pelo menos cinquenta representantes no Congresso, uma meta bastante ambiciosa. “Por definição defendemos a terra e a natureza, e isso sempre vai ser um denominador comum entre todos nós. O povo indígena, mesmo na política, não precisa pensar sempre igual”, diz Joênia. A questão é exatamente essa. Quem olha de fora não vê, mas existem diversas tribos no Brasil.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793