Na terça-feira 24, o Diário Oficial da União publicou uma portaria da Casa Civil nomeando a professora Kelli Cristine de Oliveira Mafort para comandar a Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas da Presidência da República. O cargo é novo, foi criado pelo presidente Lula e tem como meta estabelecer um canal de comunicação direto entre o Palácio do Planalto e a chamada sociedade civil. Através dele, representantes de movimentos poderão levar suas demandas ao conhecimento das autoridades de maneira célere. No caminho inverso, o governo pode se antecipar e resolver essas demandas antes de elas se transformarem em um problema mais sério ou em um conflito mais grave. Parece uma ideia interessante e, acima de tudo, civilizada. Chama a atenção, no entanto, o perfil da escolhida para exercer essa difícil tarefa.
Kelli é coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), entidade que nas últimas três décadas se mostrou capaz de muita coisa, menos de dialogar. No currículo da nova secretária há episódios de ocupação de propriedades rurais, invasão de prédios públicos e bloqueio de rodovias. A professora também liderou uma das ações mais barulhentas do MST. Em 2016, cerca de 1 000 pessoas entraram numa fazenda em Duartina (SP) que pertencia ao coronel João Baptista de Lima Filho, ex-auxiliar e amigo do então vice-presidente Michel Temer. Armados, os invasores renderam os funcionários, depredaram a sede, danificaram carros, furtaram equipamentos, abateram animais e espalharam excrementos nas dependências da propriedade.
Não era exatamente um protesto pela reforma agrária. “A ocupação dessa fazenda é para denunciar a intervenção do agronegócio na articulação do golpe. Estamos aqui para denunciar as ligações escusas de Michel Temer com o proprietário da fazenda e sua empresa de fachada para arregimentar propina”, explicou na ocasião a líder da invasão, Kelli Mafort. O golpe em questão, segundo ela, teria sido o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. A professora foi indiciada por furto, dano, disparo de arma de fogo e organização criminosa — mas o caso acabou arquivado. Na época, ela forneceu como seu endereço um motel na cidade de Ribeirão Preto (SP). “Nesse estabelecimento, perguntamos na portaria e nos informaram que não tem nem nunca teve nenhuma funcionária como esse nome”, anotou o oficial de Justiça que tentou citá-la.
Além de líder do MST, Kelli é graduada em pedagogia, tem doutorado em ciências sociais e leva uma vida aparentemente simples — aliás, mais que simples. De 2013 a 2021, ela foi beneficiária do Bolsa Família e do Auxílio Brasil, programas destinados a famílias carentes. Recebeu ao todo 16 000 reais em valores não corrigidos. A nova secretária tem opiniões contundentes a respeito dos temas que passaram a ser discutidos pela sociedade após o 8 de janeiro, a dia dos atos que terminaram em vandalismo e na depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Sobre bloquear rodovias como forma de protesto, ela concorda que não é um método muito simpático. “Mas, na história do nosso país, se a gente não lançar mão de métodos que chamem a atenção dos governos, a gente não consegue pautar nenhum tema”, ponderou. E sobre as invasões de fazendas? “Invasão é coisa de elite. Ocupação é o direito legítimo dos povos de restituir aquilo que lhes foi roubado”, relativizou.
Embora curioso, o perfil radical da secretária de Diálogos não significa necessariamente que a partir de agora invasões e depredações entrarão para o rol de protestos considerados legítimos pelo atual governo. O MST, por exemplo, quer mostrar que mudou. Nas redes sociais, as entrevistas de dirigentes defendendo a invasão de terras deram lugar a artigos que pregam o plantio de árvores e a distribuição gratuita de alimentos. Na campanha eleitoral, o presidente Lula ressaltou que o movimento agora é um grande produtor de alimentos orgânicos. Em entrevista a VEJA, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse que se reuniu com as lideranças dos sem-terra antes de tomar posse e recebeu a garantia de que invasão como método para forçar a reforma agrária é coisa do passado.
A coordenadora do MST, ao que parece, também evoluiu. “Nós temos pesquisas que evidenciam que 90% dos assentamentos existentes no Brasil são resultantes de ocupações de terra”, dizia ela, em 2019. Mais recentemente, em março do ano passado, a professora foi ainda mais incisiva: “Enquanto morar, viver e comer for um privilégio, ocupar é um direito”. No governo, sua postura mudou. Um dia depois da repulsiva invasão e depredação dos prédios da Praça dos Três Poderes, a secretária postou a seguinte mensagem: “A polícia do DF invadiu e destruiu Brasília, contando com a colaboração de bolsonaristas extremistas e das Forças Armadas. Assim!”. Kelli, pelo menos quando o invasor é de uma ideologia diferente, também fica indignada.
Esqueçam meu passado
O histórico do MST é marcado por manifestações violentas, invasões de fazendas e de prédios públicos, vandalismo e mortes
Policial Degolado
Em 1990, cerca de 600 militantes do movimento entraram em confronto com a polícia numa praça próxima do Palácio Piratini, em Porto Alegre. Durante o conflito, um cabo da Brigada Militar foi degolado com golpe de foice e morreu
Massacre no Pará
Em 1996, militantes do MST fecharam uma rodovia no extremo sul do estado. Policiais foram enviados ao local para acabar com o bloqueio. Houve um violento confronto que terminou com a morte de dezenove manifestantes e dezenas de feridos
Fazenda do Presidente
Em 2002, cerca de 500 pessoas ligadas ao movimento invadiram uma fazenda em Buritis (MG) que pertencia à família do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Os sem-terra depredaram as instalações e defecaram sobre os móveis
Invasão do ministério
Em 2015, manifestantes do MST ocuparam a sede do Ministério da Agricultura, em Brasília. As portarias de vidro do prédio foram quebradas, as paredes pichadas e as salas totalmente vandalizadas
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826