Centro do poder nacional desde 1960, quando foi inaugurada, Brasília nunca prendeu tantas pessoas em tão curto espaço de tempo quanto na semana que passou: mais de 1 300 detenções em três dias. Embora a balbúrdia terrorista tivesse tentado se travestir de ato político — o que não foi —, não havia entre os presos nenhum dirigente de partido, nenhum deputado ou senador. Isso, no entanto, não quer dizer que muitas lideranças que chegaram ao poder pelo voto não estivessem por trás do quebra-quebra golpista que teve como alvo a própria democracia. O discurso que embalou a ida de milhares ao Distrito Federal, para protagonizar um dos dias mais vergonhosos da história do país, vinha sendo moldado havia dias pela pregação irresponsável de gente bem conhecida.
O líder maior da horda é, claro, o próprio Jair Bolsonaro, que precisa ter sua responsabilidade seriamente apurada e investigada (leia na pág. 34). Mas há outros que inspiram os terroristas bolsonaristas da pior maneira, como Valdemar Costa Neto, chefe do partido do ex-presidente. Depois da derrota para Lula, o cacique do PL questionou o resultado por meio de uma auditoria fajuta das urnas e pediu a anulação da eleição. Em dezembro, publicou um vídeo em que criticava Moraes por autorizar operação da Polícia Federal contra atos golpistas pelo país. “Quero agradecer vocês que estão na rua, que estão ainda lutando. Continuem na luta, o Bolsonaro não vai decepcionar ninguém”, disse. Na semana anterior às invasões, gravou outro depoimento para saudar os golpistas. Quando eclodiu a tragédia, o tom mudou: ele foi às redes sociais para dizer que o ato não representava nem o PL nem Bolsonaro.
Outro bolsonarista que abusou do proselitismo golpista desde a vitória de Lula foi o senador eleito Magno Malta (PL-ES). “Queremos transparência nas eleições, mesmo que isso custe mandatos dos já eleitos”, postou no fim de novembro. Um vídeo em que aparece pregando uma “ação dura” para “salvar o país” foi usado nas redes para convocar o ato em Brasília — ele diz que era gravação antiga. Os questionamentos à eleição e as tentativas de deslegitimar o Judiciário, pilares do ideário dos terroristas, também foram usados por outros parlamentares — não por acaso, a maioria do PL. Alguns são contumazes, como Carla Zambelli (PL-SP) e Carlos Jordy (PL-RJ); outros são recém-eleitos, como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Zé Trovão (PL-SC). Houve situações ainda mais acintosas, como as dos deputados eleitos André Fernandes (PL-CE) — que divulgou manifestantes roubando a porta do armário do ministro Alexandre de Moraes —, Silvia Waiãpi (PL-AP) — que estimulou a turba golpista em postagens — e Clarissa Tércio (PP-PE), que replicou o vídeo de uma invasora do Congresso, instituição que ela vai representar a partir de fevereiro. Enquanto alguns, como Valdemar e Malta, recuaram diante do claro erro político, alguns seguiram em frente, como Bia Kicis (PL-DF). No dia seguinte aos ataques na capital, seu reduto eleitoral, ela fez uma publicação extensa no Twitter para criticar o STF e questionar a legitimidade de Lula. Na sequência, fez o que mais sabe: mentiu. Na tribuna da Câmara, propagou a notícia falsa de que uma idosa bolsonarista havia morrido sob custódia da PF — depois pediu desculpas. Ainda tentou, com outros colegas, entrar no prédio da PF onde estão os presos e foi barrada.
A pregação irresponsável, desta vez, pode custar caro. André Fernandes, Silvia Waiãpi e Clarissa Tércio viraram alvos da Procuradoria-Geral da República, que pediu autorização ao STF para abrir um inquérito contra os três. “Postagens feitas por eles em redes sociais antes e durante as invasões podem configurar incitação pública à prática de crime e tentativa de abolir, mediante violência ou grave ameaça, o estado democrático de direito”, afirma a PGR. “Somos favoráveis à punição máxima a quem participou da invasão, para bandidos e vândalos que cometeram crimes. Se existe algum deputado que incentivou, vai ter de responder por isso”, diz Altineu Côrtes (RJ), líder do PL na Câmara. Também começaram a proliferar iniciativas para responsabilizar quem tenha incentivado ou participado de atos antidemocráticos. O PT e o PSOL pediram que o STF investigue a atuação de políticos nos ataques, enquanto a direção petista defendeu uma CPMI para apurar os atos. Já o deputado Marcelo Ramos (PSD-AM) solicitou a abertura de uma sindicância pela Corregedoria da Câmara.
Capítulo mais nefasto da jovem democracia brasileira, que saiu de um golpe institucional só em 1989, os ataques em Brasília precisam ensinar à classe política que retóricas antidemocráticas não podem ser toleradas ou usadas como bandeira eleitoral. O risco é que os monstrengos criados por elas ganhem vida e, em um surto de ignorância, depredem os símbolos da República.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824