Em uma casa de shows com capacidade para 5 000 pessoas e tomada por simpatizantes, no bairro Anchieta, na divisa entre Porto Alegre e Canoas, no Rio Grande do Sul, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diz que gostaria de cantar duas músicas populares, Querência Amada e Céu, Sol, Sul, Terra e Cor, que exaltam as qualidades do estado e de seus moradores — mas recua dizendo não saber cantar, no que serve de deixa para a plateia entoar parte de uma delas. Antes, havia citado o Internacional, para quem disse torcer, e o Grêmio, que chamou de “grande equipe” e lamentou que estivesse na Série B do Brasileiro. E partiu para a política: elogiou Olívio Dutra e Tarso Genro, ex-governadores e ex-prefeitos da capital e dois símbolos dos momentos de glória do petismo no estado — ambos no evento. Lembrou da reunião de quatro horas com Leonel Brizola em Resende (RJ) em 1989 para convencer o líder gaúcho a apoiá-lo no segundo turno presidencial. No palco, junto a líderes locais e dirigentes dos partidos aliados, também estava Dilma Rousseff, que embarcou na política pelas mãos do brizolismo. E, ao fim da longa introdução, mandou um recado direto aos gaúchos. “A minha relação com vocês é muito forte”, afirmou.
Nada era gratuito no discurso de Lula, e a primeira viagem de campanha com o vice Geraldo Alckmin (PSB) veio em momento conveniente: pesquisas apontam o avanço da sua candidatura na região e deixam em xeque a perspectiva de Jair Bolsonaro (PL) repetir o desempenho de 2018, quando teve 68% dos votos no segundo turno. Internamente, Lula tem dito que não há voto perdido — e os levantamentos de intenções de voto mostram, de fato, que a região pode estar experimentando uma virada à esquerda. O Datafolha mostra que o petista supera o rival nas pesquisas e reduziu a rejeição. Já Bolsonaro viu cair as intenções de voto e a avaliação positiva (veja o quadro abaixo). Levantamento concluído pelo Paraná Pesquisas no dia 20 já mostrara um Rio Grande do Sul dividido, com 46,3% aprovando Bolsonaro e 48,6% desaprovando.
As razões para os novos ventos nos pampas são variadas. O fator econômico, como em todo o país, influenciou, em especial a alta dos preços. “Sobre a situação econômica dos entrevistados no Sul, em março, 41% diziam que tinha piorado. Agora são 51%”, diz Luciana Chong, diretora do Datafolha. Lula sabia disso ao centrar o seu discurso em solo gaúcho nos preços dos alimentos, dos combustíveis e do botijão de gás. Outra variável pode estar ligada à saída da corrida presidencial de nomes de centro como João Doria (PSDB), Eduardo Leite (PSDB) e Sergio Moro (União Brasil). Em cenários que incluíam os três, a vantagem de Lula era de 6 pontos. Sem eles, subiu para 17. “É possível que o eleitor de centro, sem uma candidatura competitiva, migre para Lula por causa da rejeição a Bolsonaro. São eleitores que podem dar importância maior ao vice e, nesse sentido, Alckmin é um grande ganho”, avalia o cientista político Lucio Rennó, da UnB.
Não por acaso, a presença do ex-tucano na empreitada gaúcha foi cercada de expectativas pelos petistas. “Ele tem influência entre conservadores, quebra resistências”, diz Tarso Genro. “Pesquisas internas mostram um impacto muito positivo do lançamento do movimento com Alckmin no Sul e Sudeste”, acrescenta o deputado José Guimarães (PT-CE), responsável por palanques regionais. Além disso, as relações de Alckmin com políticos locais de partidos como PSDB e PSD turbinam a capilaridade da chapa. No Rio Grande do Sul, o eleitor pode acabar produzindo um voto tucano-petista. Membros do PSDB, que articulam a campanha do governador Ranolfo Vieira Júnior com aval de Eduardo Leite, admitem que eleitores combinem a opção estadual na chapa tucana com o voto no ex-presidente, na opção já batizada de “Luleite”.
Elementos locais, como a maior estiagem em sete décadas enfrentadas pelos agricultores gaúchos, também podem contribuir. Entre os números que o PT deve destacar na campanha estão bilhões de reais em créditos rurais do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e o Programa de Aquisição de Alimentos, que em seu auge, em 2012, comprou diretamente dos agricultores 587 milhões de reais em produtos. A agropecuária é tradicionalmente associada a Bolsonaro, mas o setor está longe de ser homogêneo: grandes exportadores e latifundiários costumam ser alinhados ao presidente, enquanto cooperativas e agricultores familiares, muito comuns no Sul, são mais abertos ao PT. “Contribuem para nossa dificuldade a pandemia, a redução de políticas e recursos públicos para financiamento e compras da agricultura familiar e três anos de estiagem”, relata o presidente da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar no estado, Gervásio Plucinski.
Embora tenha ativos importantes para decolar, Lula tem pendências políticas no Sul. PT e PSB não se entendem no Rio Grande do Sul, ainda não se acertaram em Santa Catarina e seus candidatos não estão entre os favoritos. “Quero fazer um apelo aos partidos que estão aqui: sentem, conversem e cheguem a um consenso sobre quem será nosso candidato a governador e senador”, pediu Lula em Porto Alegre. No Paraná, o candidato será o ex-governador Roberto Requião, recém-filiado ao PT. “Vamos alinhar as campanhas, mostrar que quando Requião era governador e Lula, presidente, o estado se desenvolveu”, afirma o presidente do PT paranaense, Arilson Chiorato.
O avanço de Lula no Sul deixou em estado de alerta a campanha de Bolsonaro, que vem procurando reagir ao avanço, intensificando agendas por lá. Entre abril e maio, o presidente foi a Pelotas (RS) e Maringá (PR). Publicamente, aliados dizem que as pesquisas não correspondem à realidade. “Temos motivos para confiar mais em levantamentos internos, que mostram resultados diferentes”, afirma Ricardo Barros (PP-PR), líder de Bolsonaro na Câmara. Outro argumento são as pesquisas estaduais, onde os pré-candidatos petistas Requião (PR), Décio Lima (SC) e Edegar Pretto (RS) estão abaixo, respectivamente, de Ratinho Jr. (PSD), Carlos Moisés (Republicanos) e Onyx Lorenzoni (PL). “Mas seria incoerência acreditar numa pesquisa e não na outra”, pondera Rodrigo Lorenzoni (PL-RS), filho de Onyx, admitindo que o crescimento de Lula na região é pauta na campanha.
Conquistar o Sul, que tem 15% do eleitorado, é importante para a disputa. Um detalhe que deveria preocupar Bolsonaro é o histórico estilo “hay gobierno, soy contra” — o Rio Grande nunca reelegeu um governador desde a proclamação da República. Nos últimos vinte anos, a região sempre deu a vitória ao presidenciável da oposição: Lula (2002), Alckmin (2006), José Serra (2010), Aécio Neves (2014) e Bolsonaro (2018) — se este vencer agora, será a primeira vez que um presidente triunfará ali desde 1998, com FHC.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792