Nem um simples passeio no fim de semana é mais o mesmo. No último sábado, por exemplo, Fabiano estava com a família numa feira, em Brasília. Depois de ser insistentemente acompanhado por olhares por onde passava, um rapaz se aproximou e pediu: “Você poderia tirar uma foto comigo?”. Dias antes, seu irmão gêmeo havia passado por uma situação semelhante. Em um restaurante no Rio de Janeiro, foi abordado por um garçom e pela proprietária do estabelecimento, que perguntavam se ele trabalhava com o presidente da República. A resposta foi negativa, mas os curiosos não queriam acreditar. Só se convenceram quando ele mostrou uma fotografia ao lado do verdadeiro “assessor do presidente”. Aos 40 anos, Fabiano Guimarães da Rocha, responsável por interpretar na língua brasileira de sinais (libras) os pronunciamentos de Jair Bolsonaro, experimenta uma inesperada fama e já recebe até sugestões para entrar na política — uma brusca mudança de vida.
O carioca chegou a Brasília em setembro do ano passado. Na época, a primeira-dama Michelle Bolsonaro pediu ao presidente que traduzisse simultaneamente seus discursos para os surdos. O Planalto abriu então duas vagas para intérprete. Fabiano soube da seleção, se candidatou e foi chamado. Desde então, ele se tornou figura onipresente ao lado do presidente, participa de viagens, aparece na televisão durante entrevistas e acompanha as cerimônias oficiais. O intérprete aprendeu libras quase por acaso. Aos 18 anos, era membro de uma igreja e participava de um grupo que fazia apresentações religiosas. Certo dia, o líder do grupo inseriu na coreografia um pouco da língua de sinais. Ele ensaiou os primeiros movimentos, se interessou por libras, resolveu estudá-la e se tornou professor. “Faço parte de uma parcela histórica de intérpretes, daqueles que roeram o osso para a construção de tudo o que hoje existe”, conta.
Discreto, ele não gosta de falar muito sobre o trabalho ao lado do presidente. No governo, segundo ele, o maior desafio é traduzir o ministro da Economia, Paulo Guedes, visto que há muitos termos técnicos que nem sempre são diferenciados na linguagem de sinais — investimento e financiamento, por exemplo, são interpretados da mesma maneira. É, porém, o presidente Bolsonaro, conhecido por seu falatório nada técnico, que deixa Fabiano em apuros. Os pronunciamentos do presidente nunca são informados previamente, mas normalmente o intérprete recebe briefings para se preparar, o que não evita determinadas surpresas, como o episódio em que Bolsonaro chamou jornalistas de “bundão”. Fabiano foi rápido no gatilho, fazendo gestos circulares para traduzir o palavrão presidencial. “Nós interpretamos a fala do orador. O script que nós temos é o da fidelidade, e temos o compromisso de transmitir o discurso de quem o pronuncia. O que o presidente ou uma autoridade fala, a fala é dele. A gente só faz a transcrição”, explica. Longe, porém, de Fabiano fazer qualquer crítica ao presidente, a quem diz ter entregado seu voto em 2018 e concordar com seus valores sobre religião e família. Evangélico fervoroso, o intérprete de libras participa de manifestações pró-governo, é apoiador de Bolsonaro nas redes sociais e até usa ternos encomendados ao mesmo alfaiate do presidente.
Apesar da proximidade, diz que nunca teve a oportunidade de conversar com Jair Bolsonaro — o que o impede, por exemplo, de encaminhar os recados, os pedidos e as cartas que recebe endereçados ao chefe da Nação. É a simples presença ao lado do presidente que lhe traz a fama — em suas redes sociais, ele já foi até chamado de “nosso deputado Fabiano”. Essa possibilidade, garante, ainda não está no horizonte. Nas eleições deste ano, Fabiano descartou uma série de convites para ser garoto-propaganda de candidatos que carregam a pauta da acessibilidade. Não quer misturar as coisas, explica.
Nascido em Belford Roxo, o intérprete de libras tem uma origem humilde. A mãe criou os dez filhos sozinha, e ele começou a trabalhar aos 8 anos vendendo churrasquinho na rua para ajudar nas contas de casa. Hoje, diz estar vivendo um sonho na capital federal — e realizando outros também. “Até então, os surdos tinham de perguntar o que foi falado e sempre dependiam de terceiros. Agora eles tiveram um salto de autonomia. Não importa se vão concordar ou não, mas, ao menos, eles têm o direito de acesso àquele discurso, àquela fala. E isso faz toda a diferença”, explica. Não é à toa que já querem que ele se candidate. Eleitorado, por sinal, ele já tem. Discurso também.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705