A resistência no Brasil a uma reforma robusta da Previdência parecia tão sólida e inabalável quanto as Muralhas da China. Durante mais de duas décadas, vários presidentes tentaram atravessar essa barreira, sem muito sucesso, conseguindo aqui e ali alguns avanços tímidos. Coube a Jair Bolsonaro o mérito de pôr a questão como um dos focos principais de seu governo e nomear um general eficiente, Paulo Guedes, seu “posto Ipiranga”, para auxiliá-lo na guerra. O resultado é que avançou mais do que qualquer outro na intrincada missão de iniciar uma revolução no sistema, o que envolveu acabar com injustiças como os privilégios dos funcionários públicos e adequar a concessão de benefícios ao novo perfil demográfico do país. A proposta, aprovada em segundo turno na Câmara na última quarta, 7, vai gerar uma economia de quase 1 trilhão de reais nos próximos dez anos, liberando dinheiro para investimentos em outras áreas, como saúde e educação. Ela representa também a maior vitória política do presidente até o momento — e não foi pouca coisa para quem está há menos de oito meses no Palácio do Planalto.
Seria a hora de comemorar e vislumbrar um céu de brigadeiro nas relações com o Congresso rumo à aprovação de outras pautas importantes. O que se vê, no entanto, são nuvens carregadas no horizonte. A já folclórica incontinência verbal do presidente, sua capacidade de produzir crises quase diárias e a ausência de uma estratégia para formar uma base de apoio não permitem tanto otimismo. Projetos como a MP da Liberdade Econômica e até a obsessão do presidente de nomear seu filho Eduardo Bolsonaro como embaixador em Washington correm riscos.
Mesmo na questão da Previdência, a sensação entre muitos parlamentares, incluindo os de situação, é que o negócio avançou apesar de Bolsonaro. A mudança nas aposentadorias sofreu bombardeio incessante da oposição, mas a gritaria foi superada pela articulação firme do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que costurou um acordo envolvendo, além dos governistas, o Centrão e partidos como PSDB e MDB. Conseguiu não ser atrapalhado também pelo amadorismo egocêntrico e irresponsável das hostes bolsonaristas na Casa.
A aprovação custou ainda alguns anéis ao governo, que abriu mão de pontos como o sistema de capitalização e acelerou nos últimos meses o volume de liberação de emendas a parlamentares. Só em julho, o governo disponibilizou cerca de 3 bilhões de reais em troca de apoio à reforma. O líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), minimizou o protagonismo de Maia no processo e as perdas em relação ao projeto original. “Isso faz parte do sistema legislativo, é normal ceder em alguns pontos”, acredita. “Os eixos estruturantes da reforma foram mantidos”, afirma o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho.
A próxima etapa envolve passar a reforma no Senado, o que pode ocorrer em até 65 dias, segundo avaliação do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Para que o projeto aprovado pelos deputados siga sem alterações, já foi definida a estratégia: será apresentada uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) paralela para contemplar a discussão que não se encerrou nas primeiras votações: a inclusão ou não de estados e municípios na reforma. O tema enfrenta a oposição de parlamentares, que acreditam que isso deva ser discutido pelas Assembleias estaduais e Câmaras locais.
Fora a Previdência, outra prioridade, que já desencadeou uma corrida contra o tempo, é aprovar a Medida Provisória 881/19, a MP da Liberdade Econômica, que desburocratiza os processos de abertura e funcionamento de empresas. Ela precisa ser aceita nas duas Casas até 27 de agosto, do contrário perderá a validade e não poderá mais ser reeditada neste ano. Deputados do chamado Centrão prometem impor barreiras ao andamento dessa pauta. Na Câmara deve começar a ganhar velocidade também a reforma tributária, outro projeto considerado prioritário, mas cujo tratamento pela gestão Bolsonaro ilustra a dificuldade do governo para fazer avançar suas ideias. Até agora, o governo não conseguiu formular uma proposta para ser entregue ao Congresso. Em mais um sinal de protagonismo, a Câmara já deixou claro que não vai esperar e faz andar a PEC apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), com projeto elaborado pelo economista Bernard Appy. O governo, sem muita perspectiva, tende a abraçar a iniciativa.
Outra pedra fundamental da gestão Bolsonaro, o ministro da Justiça, Sergio Moro, também tem passado por apertos relacionados à falta de articulação com o Legislativo. Seu projeto anticrime não andou até aqui e as perspectivas são de que saia da Câmara bem mais magro do que entrou. O grupo de parlamentares encarregado de analisá-lo já retirou dois pontos: o que possibilita a prisão em segunda instância e o que implanta o plea bargain, instrumento que permite ao acusado se declarar culpado e se livrar do processo. Temendo atrapalhar a reforma da Previdência, Bolsonaro pediu a Moro que desse uma “segurada” no projeto. No Senado, o clima em relação aos projetos prioritários é o mesmo. “Nada do que o presidente faça ou diga vai atrapalhar a agenda econômica, em especial a reforma da Previdência, as medidas de desburocratização da economia e a reforma tributária. Porque não são pautas de governo, são de Estado, do país, e o Congresso está extremamente amadurecido”, diz Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Ela alerta, porém, para dificuldades em pautas não tão consensuais ou emergenciais, como a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para embaixador nos EUA. Uma PEC apresentada por Styvenson Valentim (Podemos-RN) que proíbe a nomeação de parentes e barra casos como o do Zero Três ganhou a assinatura de quarenta dos 81 senadores.
Apesar do protagonismo evidente do Congresso, o governo não pretende mudar sua estratégia por acreditar que a parceria, principalmente com Maia, é o caminho. “Para nós, a atuação dele é extremamente importante, porque o governo não tem uma base e criou uma forma de governar sem o toma lá dá cá das nomeações ministeriais, como ocorria antes”, afirma o deputado Delegado Waldir (PSL-GO). “Bolsonaro permitiu que Rodrigo Maia tivesse esse protagonismo.” A parceria — e não submissão — teria sido ilustrada, afirma, pela ida de Guedes à Câmara para agradecer a Maia logo após a aprovação da reforma e pela ida do deputado, no dia seguinte, a um café da manhã com Bolsonaro. O gesto, de acordo com o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL), serve como símbolo do clima de colaboração entre o governo e a liderança parlamentar. “Ter um Parlamento protagonista é bom para o país”, entende. Na hipótese mais otimista dentro dessa perspectiva, novos avanços podem ocorrer — apesar dos arroubos verbais do presidente.
Com reportagem de Alessandra Kianek, João Pedroso de Campos e Mariana Zylberkan
Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647