Nas duas vezes em que disputou a Presidência da República, Jair Bolsonaro elaborou um plano para salvaguardar o seu mandato e escolheu para ocupar a vice-presidência dois generais de quatro estrelas — figuras que, em sua visão, seriam rejeitadas pelas classes política e econômica e serviriam como um escudo contra eventuais manobras para tirá-lo do poder. O presidente Lula, por sua vez, usou a vice para romper resistências de setores refratários ao PT e ampliar alianças partidárias, solução que ajudou a garantir o seu terceiro mandato. Trazendo um inédito paralelo com a corrida nacional, as eleições municipais deste ano, especialmente nas grandes capitais, estão reservando ao vice-prefeito uma atenção especial. O cargo, que já foi considerado decorativo e sem muita relevância, conquistou status de posto estratégico, agora é alvo de cobiça dos grandes partidos e está no centro das articulações que envolvem os maiores atores políticos do país. Nos últimos dias, por exemplo, o radar das principais lideranças em Brasília estava voltado para São Paulo.
Maior colégio eleitoral do país, a cidade promete uma das eleições mais disputadas dos últimos anos. Segundo a última pesquisa divulgada pela Atlas/Intel, Guilherme Boulos (Psol) tem 35,7% das intenções de voto, seguido por Ricardo Nunes (MDB), o atual prefeito, que vai concorrer à reeleição, com 23,4%. O grande duelo, porém, será entre petistas e bolsonaristas, particularmente entre Lula e Jair Bolsonaro. Em 2022, Lula saiu vitorioso na capital, mas o estado entregou 55% dos votos a Jair Bolsonaro. Os dois encaram a disputa como uma espécie de terceiro turno das eleições presidenciais, querem manter viva a polarização e os vices são peça-chave nessa estratégia. Presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann já afirmou que vencer em São Paulo “é também ganhar no Brasil”. Com esse objetivo, coube a Lula articular no início do ano uma aliança inesperada: até então secretária de Ricardo Nunes, a ex-prefeita Marta Suplicy foi convencida pelo presidente a superar as desavenças do passado — ela criticou a corrupção no partido e apoiou o impeachment de Dilma Rousseff — e voltar ao PT para assumir o posto de candidata a vice na chapa de Boulos.
Do outro lado, Ricardo Nunes até tentou fugir da armadilha da polarização, mas não conseguiu. As pesquisas mostram que o apoio de Jair Bolsonaro e de seu partido, o PL, pode ser decisivo. Para firmar a aliança, porém, o ex-presidente exigiu indicar o candidato a vice. O indicado foi o coronel Ricardo Mello Araújo, ex-comandante da Rota, a tropa de elite da Polícia Militar paulista. Neófito na política, o coronel reza a cartilha do bolsonarismo: carrega a bandeira da segurança pública, defende o voto auditável e já chamou Lula de “bandido”. Para o prefeito, é o que ele precisa para amarrar os votos mais conservadores. Já Bolsonaro, numa estratégia similar à de Lula, amplia o leque de influência sobre a maior cidade do país, movimento que ele considera vital para um eventual retorno à política ou para pavimentar a campanha presidencial de um nome apoiado por ele. “Os dois principais players nacionais, tanto o PL quanto o PT, não têm candidato na maioria das cidades. O mínimo que eles podem ter é o vice, portanto. É o jeito de manter protagonismo e esperar que isso amarre alguma coisa para 2026”, afirma Murilo Hidalgo, diretor do instituto Paraná Pesquisas.
O Rio de Janeiro vive um cenário parecido. Lula também se envolveu pessoalmente nas articulações para tentar emplacar o candidato a vice na chapa de Eduardo Paes (PSD), que disputará a reeleição. Bem avaliado, o prefeito tem 51% das intenções de voto, segundo pesquisa Quaest divulgada na terça-feira 18, e tem lançado mão desse cacife para se proteger das pressões. Na cidade do Rio, a vice é vista como um bilhete premiado. Paes já confidenciou a aliados a intenção de concorrer ao governo do estado em 2026. Ou seja, se ele conseguir a reeleição em outubro e der sequência ao plano, o seu companheiro de chapa assumirá o comando do segundo maior colégio eleitoral do país por dois anos e meio. É um trampolim e tanto para a carreira de qualquer pessoa e uma janela de oportunidade para alguns partidos. Por causa disso, a lista de pretendentes ao posto enfileira secretários municipais, vereadores, deputados estaduais, deputados federais e até auxiliares do presidente Lula. O PT, por exemplo, vislumbra a chance de mudar seu status de coadjuvante para protagonista num estado em que o partido sempre enfrentou dificuldades eleitorais — daí o empenho de Lula. Considerando essa possibilidade, o ex-deputado André Ceciliano deixou recentemente a secretaria de Assuntos Federativos da Presidência da República. “Com o PT, o Paes tem chance de vencer a eleição logo no primeiro turno”, avalia ele. Não é bem isso que as pesquisas mostram. De acordo com o último levantamento, a intenção de votos no prefeito cai quando Lula é citado como apoiador de sua candidatura.
No duelo particular entre petistas e bolsonaristas, o ex-presidente aparece como um cabo eleitoral mais eficiente na largada do Rio de Janeiro. Se nada mudar, o principal adversário de Eduardo Paes será o deputado federal Delegado Ramagem (PL), que também segue com o vice indefinido e aparece em segundo lugar nas pesquisas, com 11% das intenções de voto. Quando o eleitor é informado de que ele é o candidato apoiado por Jair Bolsonaro, o índice salta para 29%. Eduardo Paes, por enquanto, não deu sinais de que vai ceder à pressão. Ele prefere ter como companheiro de chapa um correligionário — garantia de que seu partido continuará dando as cartas no Rio e de que ele não atrairá para si a rejeição que Lula e o PT têm na capital fluminense.
Situação semelhante enfrenta o prefeito do Recife, João Campos (PSB). Franco favorito no pleito, ele também planeja disputar o governo do estado em 2026, busca uma solução caseira para compor a chapa e, claro, sofre pressão dos petistas pela vaga de vice. “O PT tem uma contribuição importante do ponto de vista político e administrativo a dar ao Rio e ao Recife, e é uma força política que deveria ser levada em consideração”, diz o senador Humberto Costa (PT-PE), coordenador do grupo que organiza e traça as estratégias eleitorais da legenda. “Acho difícil uma candidatura viável para um governo de estado, de quem quer que seja, que tenha uma má vontade da parte do PT ou um sentimento de que o PT foi escanteado”, adverte.
Outros figurões da política também têm se dedicado à engenharia das candidaturas a vice. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, planeja disputar uma cadeira no Senado em 2026. O projeto passa pelo fortalecimento de seu nome em Maceió, a única cidade do Nordeste que deu vitória a Bolsonaro na última eleição. Por isso, Lira tenta emplacar um vice sobre o qual tenha influência na chapa do atual prefeito, João Henrique Caldas (PL). JHC, como é conhecido, deve deixar a função na metade do mandato para tentar o governo ou uma vaga no Senado. Ele, assim como Paes e Campos, também faz contas sobre como a composição da chapa pode ajudar ou atrapalhar seus projetos futuros — nos últimos dias, cresceram os rumores de que o prefeito pode recuar da parceria combinada com Lira e fechar a aliança com o senador Rodrigo Cunha (Podemos). O motivo? A mãe de JHC é suplente de Cunha e herdaria a cadeira dele no Senado. Parece uma opção politicamente (ou familiarmente?) interessante, mas o prefeito ainda avalia se vale a pena ganhar um inimigo para resolver essa complexa equação.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898