Em sua edição passada, VEJA publicou uma entrevista exclusiva com Waldir Ferraz, amigo e ex-assessor do presidente da República, em que ele admite a existência de rachadinha nos gabinetes parlamentares de Jair Bolsonaro e de seus filhos Flávio e Carlos Bolsonaro. Ao detalhar o caso, Jacaré, como Ferraz é conhecido no clã presidencial, culpou a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher de Bolsonaro, pela organização do esquema e disse que ela chantageia o ex-capitão, pedindo dinheiro e outras vantagens para não revelar seus segredos às autoridades. Procurado, o presidente não se pronunciou nem antes nem depois da publicação da reportagem. Carlos também se manteve em silêncio. O único a se manifestar foi Flávio, que tentou emplacar a versão de que Jacaré não tinha dito nada a respeito do que o próprio senador chamou de “série de problemas” nos gabinetes da família. “Ele publicou uma nota oficial desmentindo aquilo que está na revista”, declarou o Zero Um. Foi uma tremenda bola-fora. Em resposta, o site de VEJA publicou trechos gravados da conversa com Jacaré nos quais ele relata como a rachadinha era uma prática familiar de longa data. Depois disso, todos os envolvidos optaram pelo silêncio.
Longe dos holofotes, no entanto, as engrenagens se mexeram, impulsionadas pelo instinto de autopreservação. Furiosa, Ana Cristina fez chegar a Bolsonaro sua contrariedade com as declarações de Jacaré e cobrou proteção. Já o presidente ligou para o ex-assessor e determinou a ele que submergisse. Até aqui, a ordem está sendo cumprida. Desde antes do início de seu mandato, Bolsonaro adota como estratégia evitar, sempre que possível, o tema das rachadinhas. É conhecida, por exemplo, a ofensiva deflagrada para blindar Fabrício Queiroz, acusado pelo Ministério Público (MP) do Rio de Janeiro de ser o operador do esquema no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Amigo do presidente há mais de trinta anos, como Jacaré, Queiroz ficou sumido do mapa até ser preso preventivamente num imóvel do advogado Frederick Wassef, que defende o clã presidencial. Ele só voltou a circular com mais desenvoltura recentemente, quando a investigação do caso praticamente voltou à estaca zero por decisão da Justiça. Leal à família, Queiroz sempre manteve uma relação harmoniosa com o presidente e nunca ameaçou implicá-lo em nenhuma irregularidade. O mesmo não se pode dizer de Ana Cristina.
A advogada é considerada por assessores do presidente um “fio desencapado”, daqueles que merecem atenção redobrada. Um punhado de histórias justifica a pecha. Em 2018, VEJA publicou detalhes do processo de separação entre os dois, no qual Ana Cristina acusava Bolsonaro de roubar joias do casal, de ter uma rendimento mensal de 100 000 reais (cerca de três vezes mais do que ele recebia como parlamentar e aposentado do Exército) e de ser dono de um patrimônio imobiliário formado por casas, apartamentos, lotes e salas comerciais. Ela depois recuou, creditando as acusações à cabeça quente de uma ex-mulher. Já no governo Bolsonaro, Ana Cristina decidiu se mudar para Brasília sob a alegação de ajudar seu filho Jair Renan, o Zero Quatro, a tocar a vida. Antes mesmo da mudança, ela frequentou uma mansão no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, onde foi apresentada a políticos, empresários e lobistas, numa movimentação que foi definida no Palácio do Planalto como prospecção de negócios. Em 2021, Ana Cristina finalmente trocou Resende (RJ) pela capital, onde ganhou um emprego no gabinete de uma deputada do PP, partido presidido pelo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira.
Na mudança para Brasília, ela alugou uma casa no Lago Sul, segundo disse, por 8 000 reais, apesar de seu salário bruto na Câmara ser de 8 100 reais. Desde então, reclama de dificuldades financeiras, vive atrás de oportunidades de negócios e diz que Bolsonaro não dispensa a Jair Renan o mesmo tratamento dado aos filhos que são políticos. Segundo Jacaré, Ana Cristina só pensa em dinheiro e vive a fustigar o presidente. “Ela é muito perigosa. É uma mulher que quer dinheiro a todo custo. Às vezes, ela vai ao cercadinho, frequenta o cercadinho. É uma forma de chantagem”, contou o ex-assessor do presidente. Ana Cristina nega que tenha organizado a rachadinha e chantageado o presidente. Apesar de suas queixas, seu filho já participou de algumas transações tipicamente brasilienses, No ano passado, VEJA revelou que Jair Renan abriu as portas do Ministério do Desenvolvimento Regional para empresários interessados em negócios com o governo — e que ele ganhou um carro em troca do serviço prestado. Não há notícia de que o presidente tenha beneficiado de alguma forma Ana Cristina ou o Zero Quatro.
É fato, no entanto, que a base governista impediu que a ex-mulher do presidente prestasse depoimento à CPI da Pandemia. Um requerimento nesse sentido chegou a ser aprovado com base em mensagens que mostravam o empenho dela em ajudar um lobista a emplacar conhecidos em cargos públicos. Devido à entrevista de Jacaré, porém, o governo pode ser obrigado a, uma vez mais, montar uma operação para blindar Ana Cristina. Desde o ano passado, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) tenta colher assinaturas para instalar uma CPI das Rachadinhas, destinada a investigar a prática, que configura crime de peculato. Na virada de 2021 para 2022, Vieira tinha o apoio de doze dos 81 senadores. O mínimo necessário é de 27 adesões. “Esse depoimento (do Jacaré) confirma o que a lógica já apontava, que o comando do processo é do próprio Jair Bolsonaro e que o esquema dos filhos é um esquema derivado do esquema original dele”, diz Vieira, que está empenhado em conseguir mais assinaturas. A ideia, caso a comissão seja instalada, é apurar outros casos notórios, como o do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), acusado por seis funcionárias de embolsar parte dos salários que elas recebiam.
A oposição, evidentemente, começou a se mexer para avaliar se vale a pena investir no projeto. Isso porque, além da prática ser repetida em outros grupos, a esquerda acha que Bolsonaro já está enfraquecido para a eleição e não quer ver outro nome surgir na direita ou ao centro. Primeiro senador a apoiar a iniciativa de Vieira, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) tem dividido com colegas a necessidade de uma investigação profunda sobre o tema. “Tenho uma suspeita de que é uma prática disseminada em todo o sistema político brasileiro. Temos de revelar as entranhas desses casos conhecidos”, declarou Rodrigues. Outro expoente da oposição, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) — investigado na Operação Lava-Jato e investigador na CPI da Pandemia — usou da provocação característica de uma velha raposa política e sugeriu que a CPI daria aos Bolsonaro e a Ana Cristina uma oportunidade única para eles se defenderem. Os senadores alegam ainda que a CPI das Rachadinhas seria uma espécie de alternativa à morosidade do MP e da Justiça para investigar e punir os casos. “Num país normal, com gente normal, o normal é que o Ministério Público instaure de ofício a apuração e busque uma punição na Justiça, mas a gente não vive num país normal, de gente normal”, criticou Vieira, que é pré-candidato à Presidência.
A morosidade, de fato, impera. A apuração da rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro terá de ser reiniciada depois de uma série de decisões judiciais que anularam provas, como quebras de sigilo, e mudaram o foro responsável pelo processo. Já a denúncia relacionada ao gabinete de Carlos, na qual Ana Cristina também é investigada, arrasta-se há tempos sem indício algum de que esteja perto de uma conclusão. A ex-mulher do presidente foi chamada a prestar esclarecimento, mas preferiu ficar em silêncio na ocasião.
Até pouco tempo atrás, Ana Cristina nutria o sonho de disputar uma vaga na Câmara dos Deputados na eleição deste ano. Em 2018, ela tentou, mas fracassou, obtendo apenas 4 555 votos. Seu plano de estabelecer uma carreira bem-sucedida na capital como advogada e empresária também ainda não se realizou. Talvez por isso ela nunca tenha abandonado a ideia de escrever um livro sobre o período em que esteve casada com Bolsonaro. Seu objetivo é contar, nos mínimos detalhes, tudo o que viveu e testemunhou durante o relacionamento. Algo bombástico, disse ela certa vez. Uma bomba que Bolsonaro, com certeza, não quer que exploda.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774