Uma das razões do sucesso da Operação Lava-Jato foi a convergência de uma investigação competente da Polícia Federal com o ativismo do Ministério Público e a celeridade da Justiça — um tripé que, a despeito de alguns excessos, colheu bons frutos. Sergio Moro, agora na condição de futuro ministro da Justiça, pretende reproduzir o método que desmantelou a quadrilha político-empresarial que desviou dos cofres públicos uma fortuna que pode ter chegado a 42 bilhões de reais. O ex-juiz está levando para Brasília alguns dos principais nomes que estiveram no epicentro da apuração do caso. Com isso, Moro emite mais um sinal de que a continuidade do combate à corrupção e ao crime organizado será prioridade no próximo governo — esforço necessário para que a punição dos envolvidos na maior investigação da história não fique pela metade.
Após mais de quatro anos de trabalho, há dois cenários conflitantes na Lava-Jato. No primeiro, em Curitiba, onde a investigação começou, o inventário é robusto. Lá, realizaram-se 176 acordos de delação premiada, que resultaram em 264 criminosos presos e 140 condenados. Além disso, 52 pessoas, dezesseis empresas e um partido político respondem a processos por improbidade administrativa. Foram recuperados 12 bilhões de reais em recursos desviados, propinas e bens dos criminosos envolvidos. No rol de condenados e presos do Paraná estão um ex-presidente da República (Lula), um ex-presidente da Câmara (Eduardo Cunha) e o dono da maior empreiteira do país (Marcelo Odebrecht, esse em prisão domiciliar), um saldo impensável há bem pouco tempo.
No segundo cenário, em Brasília, onde se encontram muitos dos personagens principais do escândalo, os números também falam por si — só que para exibir um resultado raquítico. Quatro anos depois de a Lava-Jato apontar o envolvimento de quase duas centenas de políticos, entre deputados, senadores, ministros e até o atual presidente da República, há apenas um condenado — uma figura lateral do esquema —, que nem preso está. Trata-se do deputado Nelson Meurer (PP-PR), sentenciado a treze anos de cadeia pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O parlamentar, acusado de receber propina de contratos da Petrobras, continua exercendo seu mandato enquanto aguarda o julgamento de um recurso no Supremo Tribunal Federal, a corte encarregada de julgar quem tem foro privilegiado. Além desse caso, as investigações resultaram em apenas nove processos. É um balanço ínfimo e uma evidência do descompasso entre a Lava-Jato curitibana e a brasiliense.
A partir de janeiro, os responsáveis pela maior investigação de corrupção da história assumirão posições estratégicas no governo. Na terça-feira 20, Sergio Moro anunciou o nome do próximo diretor da Polícia Federal e o da futura chefe do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) — dois dos cargos mais importantes do Ministério da Justiça se o objetivo é manter o cerco contra a corrupção. O próximo diretor da PF será o delegado Maurício Valeixo, ex-diretor de combate ao crime organizado. Atual superintendente da PF no Paraná, ele esteve no comando da Lava-Jato em dois dos momentos mais tensos da operação: o dia da prisão do ex-presidente Lula e o dia em que ele quase foi solto por ordem de um desembargador do Paraná. Em ambos os casos, Valeixo demonstrou habilidade para contornar as tensões, e trabalhou em sintonia com o então juiz Sergio Moro.
O comando do DRCI ficará com a delegada Erika Marena. Superintendente da PF em Sergipe, ela atuou na origem da Lava-Jato, em Curitiba, e foi a responsável por batizar a operação com o nome que ficou mundialmente conhecido. Ex-funcionária do Banco Central e especialista em crimes financeiros, Erika conduziu os inquéritos que romperam a tradição de impunidade de empresários poderosos ao indiciar os executivos de grandes empreiteiras. Mais recentemente, deu seu maior tropeço: coordenou o inquérito que apurou um esquema de desvio de dinheiro da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que trouxe resultados pífios e resultou numa tragédia — o suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier, preso na investigação sem que houvesse provas que o vinculassem ao crime. Além dos dois delegados, Moro conta com o apoio de Rosalvo Franco, ex-superintendente da PF no Paraná. Sob a gestão do futuro ministro, todos representarão a Lava-Jato no poder, encarregados de demolir um sistema em que poderosos parecem imunes à Justiça.
Em Brasília, ao contrário do que aconteceu em Curitiba, não há sintonia entre as instituições. O Ministério Público culpa a Polícia Federal, que culpa o Ministério Público, que culpa a Justiça — e assim os políticos envolvidos continuam impunes. Um dos exemplos mais gritantes é o caso do senador Fernando Collor. Seu nome surgiu logo nos primeiros meses da investigação da Lava-Jato, em 2014. A Polícia Federal apreendeu na casa de um doleiro documentos que mostravam transferência de dinheiro para o parlamentar. Interrogado, o doleiro confessou que os recursos eram parte de um milionário pagamento de propina. Collor foi denunciado um ano depois pela Procuradoria-Geral da República, mas até hoje, passados três anos, seu processo não foi julgado. Em situação semelhante estão os casos que envolvem outros políticos importantes, como os senadores Renan Calheiros (MDB), reeleito para o Senado, Gleisi Hoffmann (PT), eleita para a Câmara, e Aécio Neves (PSDB), também eleito para a Câmara — todos carregando nas costas sólidas acusações.
“Em Curitiba, foi composta uma força-tarefa com procuradores e delegados experientes. Em Brasília, não funcionou assim. Todo trabalho ficou concentrado no gabinete da Procuradoria-Geral da República, que tem uma equipe limitada”, diz o procurador Carlos Fernando Lima, ex-integrante da Lava-Jato curitibana. A falta de harmonia, aliada à morosidade e à burocracia, é o principal desafio de Moro para garantir que a Lava-Jato alcance todos os envolvidos. Em Brasília, para interrogar um parlamentar, a Polícia Federal precisa de autorização do Supremo, que, antes de decidir, consulta a Procuradoria-Geral da República, o que pode durar mais de um mês. Em Curitiba, uma autorização semelhante podia tramitar em menos de 24 horas. Essa dificuldade, que acaba sendo um seguro para manter corruptos longe da cadeia, também cria constrangimentos, como o caso do futuro titular da Saúde.
Indicado por Bolsonaro para assumir o Ministério da Saúde, o deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) está sob investigação desde fevereiro de 2015. Ele é acusado de tráfico de influência, fraude em licitação e prática de caixa dois enquanto esteve à frente da Secretaria de Saúde de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, de 2005 a 2010. Bolsonaro já disse que será intransigente com a corrupção — e o fato de ter dado carta branca a Moro para montar sua equipe reafirma esse compromisso, mas a nomeação de Mandetta é um ponto obscuro: a escolha tinha de recair sobre alguém sob suspeita? O indicado assegura que é inocente e tem sido beneficiado pela burocracia. Por exemplo: o STF pediu a quebra de seu sigilo bancário, o Banco Central foi comunicado e os dados, quando finalmente chegaram aos investigadores, estavam incompletos. Todo o trabalho teve de ser refeito — e, até agora, a investigação não avançou um milímetro. Para completar, o caso foi recentemente remetido à Justiça Federal de Mato Grosso do Sul, seguindo orientação do STF. Certamente ainda tramitará por anos antes que se anuncie uma sentença. A morosidade da Justiça eterniza sua embaraçosa condição de ministro-suspeito.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610