Havia uma mistura de surpresa e receio no ar. Ao receber a notícia sobre os ataques às instituições, Lula telefonou incrédulo para o ministro Flávio Dino, que, da janela de seu gabinete no Ministério da Justiça, viu o momento em que a situação começou a sair do controle. Era tudo muito estranho. Como aquilo estava acontecendo? As autoridades sabiam da manifestação, sabiam que mais de 100 ônibus haviam chegado a Brasília com milhares de militantes e sabiam exatamente o nível de risco que isso representava. Pelas redes sociais, grupos bolsonaristas pregavam, entre as várias sandices, que era a hora de ocupar a Praça dos Três Poderes, depor os traidores da pátria e tomar o poder. Para isso, claro, contariam com o apoio das Forças Armadas na empreitada golpista. O quadro estava ainda mais insólito porque, dois dias antes, uma comissão integrada por representantes do governo, do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e das polícias Militar, Civil e Federal combinou que, para evitar problemas, não seria permitido o acesso dos manifestantes à Esplanada dos Ministérios.
Nada estava saindo como planejado. Milhares de pessoas caminhavam em direção à Esplanada, inclusive escoltadas pela Polícia Militar. Dino soube por terceiros que, sem consultar ninguém, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), havia autorizado na noite anterior aos protestos a reabertura das pistas de acesso ao Congresso, ao Palácio do Planalto e ao Supremo Tribunal Federal, permitindo a chegada dos manifestantes ao que seria o palco da destruição. Uma barricada montada com blocos de plástico e vigiada por pouco mais de uma dezena de policiais era a única trincheira separando a multidão da Praça dos Três Poderes. Os soldados ainda tentaram impedir o avanço usando gás de pimenta, mas a resistência não durou trinta segundos — e a baderna começou.
Para o governo, não havia sombra de dúvida de que a invasão dos símbolos da República fazia parte de um plano golpista que já estava em andamento. A suspeita aumentou quando o presidente do Senado em exercício, Veneziano Vital do Rêgo, e a presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, relataram que haviam tentado falar com Ibaneis Rocha para saber o que estava acontecendo, mas ele estava incomunicável, o que era também muito estranho. Para reforçar ainda mais a teoria, descobriu-se que o secretário de Segurança do DF, delegado Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro e responsável pela coordenação e execução do plano de segurança, estava fora do país. Se um golpe estava em curso, era preciso agir rápido. Deu-se então início a uma delicada operação política que envolveu o presidente da República, ministros de estado e o Supremo.
Considerado algoz dos bolsonaristas, Alexandre de Moraes estava em Paris quando soube dos atos de vandalismo. De lá, determinou o afastamento de Ibaneis do cargo por descaso e conivência com atos golpistas. O ministro do STF também determinou a prisão de Anderson Torres e do comandante-geral da Polícia Militar Fábio Vieira também por suposta conivência com os baderneiros, situação que, segundo ele, poderia inclusive colocar em risco a vida dos ministros do Supremo, de parlamentares e do próprio presidente Lula. O governador pediu desculpas, disse que trabalhou com as informações que lhe foram disponibilizadas e aventou a possibilidade de “sabotagem” no plano de contenção dos manifestantes. O delegado, por sua vez, justificou que os “terroristas” se mostraram bem preparados, a ponto de driblar os serviços de inteligência. Para complicar ainda mais a situação, ambos são apoiadores de Jair Bolsonaro. Torres deixou o comando do Ministério da Justiça no dia 31 de dezembro. No dia 2 de janeiro assumiu o cargo de secretário de Segurança do DF e, quatro dias depois, viajou de férias. Na quarta-feira, a Polícia Federal fez uma busca na casa do delegado. Encontrou lá um estranho documento que sugeria o estudo de uma medida que permitiria ao governo intervir no Tribunal Superior Eleitoral, alvo de pesadas críticas de Jair Bolsonaro. De acordo com o advogado de Torres, Rodrigo Roca, trata-se de um manuscrito recebido pelo ex-ministro. A PF está investigando.
No Brasil, infelizmente ainda é raro uma autoridade ser punida de maneira dura e rápida por um erro ou um crime. A gravidade desse caso exige que seja assim. Ibaneis e Torres serão investigados e terão o direito de se defender no processo legal, assim como os mais de 1 300 manifestantes que foram presos e acusados de terrorismo (veja a reportagem na pág. 44). Há, porém, muitas pontas que ainda precisam ser esclarecidas sobre a organização, o apoio e a execução do criminoso ataque à democracia. Dentro do governo, embora isso não seja dito explicitamente, existe a desconfiança de que uma parte dos acontecimentos do dia 8 contaram com o aval e a complacência de militares de alta patente. A facilidade com que os manifestantes entraram no Planalto, por exemplo, vem alimentando tais teorias. A segurança das instalações do palácio é responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que, na hora da invasão, havia solicitado apenas um pelotão de trinta soldados armados e treinados para esse tipo de situação — a tropa permaneceu estacionada a poucos metros de onde ocorreram as cenas de vandalismo, mas só foi instada a agir quando a invasão começou. Era tarde demais.
O Gabinete de Segurança Institucional é comandado pelo general Marco Edson Gonçalves Dias, responsável pela segurança de Lula nos mandatos anteriores. Durante a transição, G. Dias, como é conhecido, costumava dizer que era apenas um “pitaqueiro” para assuntos de segurança — mas ele foi um dos principais responsáveis, por exemplo, pela escolha do comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, de quem é amigo pessoal. Após as depredações, enquanto aliados do presidente passaram a atacar o GSI, criticando o órgão de omissão, petardos também foram dirigidos ao ministro da Defesa, José Múcio. Dias antes da baderna, ele havia dito que nos acampamentos montados em frente aos quartéis, que acabaram sendo “incubadoras de terroristas”, como acertadamente previu Flávio Dino, ministro da Justiça, também havia democratas. A tensão aumentou quando, ainda na noite de 8 de janeiro, o STF determinou que os acampamentos fossem imediatamente desmontados e os acampados, detidos.
Designado para a função de interventor da Segurança Pública do Distrito Federal, o jornalista Ricardo Cappelli se reuniu com o chefe do Comando Militar do Planalto, general Gustavo Dutra. O encontro aconteceu no estacionamento de uma igreja próxima ao Quartel-General do Exército de Brasília. Cappelli, cumprindo a missão de dar uma resposta imediata aos atentados, queria desmontar as barracas e prender os manifestantes durante a madrugada. A proposta, porém, não foi bem recebida. O comandante teria feito observações em um tom mais contundente sobre o risco de realizar a operação em meio à escuridão, argumentando que não seria interessante para ninguém terminar aquele dia horroroso com sangue e mortes.
O impasse seguiu madrugada adentro e só foi resolvido depois de uma reunião que mobilizou um time de ministros — José Múcio, Flávio Dino e Rui Costa (Casa Civil), além do comandante do Exército. Ficou acertado, como defendia o general, que a operação seria realizada pela manhã — e assim foi feito. Sem registros de violência, os cerca de 1 500 manifestantes que ocupavam as imediações do QG do Exército foram detidos e levados de ônibus para um galpão da Polícia Federal, onde se juntaram a mais de 200 pessoas presas durante os ataques. No caminho, em cenas que demonstravam a mais absoluta falta de razão, eles balançavam bandeiras do Brasil e entoavam o Hino Nacional, ao mesmo tempo que rezavam e gritavam as mesmas palavras de ordem de antes como se nada tivesse acontecido. Eles precisam ser punidos — assim como quem permitiu que essa barbárie acontecesse.
Publicado em VEJA de 18 de janeiro de 2023, edição nº 2824