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Walter Isaacson: a pandemia acelerou o avanço da revolução da genética

O biógrafo de inovadores como Da Vinci e Einstein fala sobre o impacto de estudos que são decisivos para a produção das vacinas avançadas contra a Covid-19

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 13h19 - Publicado em 12 mar 2021, 06h00
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  • O americano Walter Isaacson considera a inquietude traço essencial dos gênios — e é com o olhar incansavelmente curioso que se debruça sobre a vida deles. Ex-diretor da Time e da rede CNN, Isaacson narrou as biografias de personagens como Einstein, Leonardo da Vinci e Steve Jobs em livros que venderam milhões de cópias e examinam os fatores que levam à inovação. Na pandemia, ele voltou sua atenção para um tema quente. A Decodificadora — que chega ao país pela Intrínseca — fala sobre Jennifer Doudna, cientista americana que ganhou o Nobel de Química em 2020 pela descoberta da técnica conhecida como CRISPR, que abriu caminho para a revolução da edição dos genes. De Nova Orleans, onde reside, o jornalista de 68 anos falou com exclusividade sobre o impacto e os dilemas dessa nova fronteira da ciência — que já rende um belo fruto, as vacinas mais avançadas contra a Covid-19.

    O senhor se debruçou sobre as vidas de gênios incontornáveis, como Leonardo da Vinci e Einstein, e outros inovadores reconhecidos ainda em vida, como Steve Jobs. Por que desta vez escolheu uma cientista cujas descobertas na área da genética ainda não foram de todo exploradas? Escolhi Jennifer Doudna porque ela está na linha de frente do novo grande salto da inovação. A primeira revolução da alta tecnologia foi a da física, detonada pelos estudos de Einstein no começo do século XX. Daí vieram a energia atômica, as viagens espaciais, os semicondutores. A segunda revolução, que abordei por meio dos feitos de Steve Jobs, foi a digital — que trouxe o microchip, a internet e os smartphones. O próximo avanço decisivo será na biologia. Já podemos vislumbrar seu impacto por meio das técnicas de edição dos genes e das moléculas de RNA. Deve-se a essa conquista a invenção das mais avançadas vacinas contra a Covid-19.

    O que permite afirmar que essas novas conquistas serão tão importantes? A possibilidade de editar nossos genes significará uma revolução maior do que as da física e do microchip para a humanidade. Ela nos permitirá determinar a saúde e as características das crianças do futuro. Trará, ainda, novas esperanças no tratamento do câncer e de outras doenças. Estamos apenas no começo dessa transformação do conhecimento.

    Como o coronavírus afetou as pesquisas sobre genética? A pandemia acelerou o avanço da ciência, sem dúvida. Na história da medicina, nunca se desenvolveu vacinas para uma doença em prazo tão curto. E as técnicas de edição do material genético demonstraram-se valiosas nessa luta contra o tempo. De maneira engenhosa, vacinas como a da Pfizer e da Moderna valem-se de pedaços de moléculas de RNA para penetrar nas células humanas e ensiná-las a se defender. A pandemia também fez com que as pessoas valorizassem mais o trabalho dos cientistas. Em momentos difíceis assim, a ciência e a biologia demonstraram como é nobre o esforço para desvendar os mecanismos da vida.

    Na pandemia, porém, há também uma torrente de negação à ciência — vinda inclusive de líderes políticos como o ex-presidente Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro. Como reagir ao obscurantismo? A melhor maneira de resistir aos ataques à ciência é celebrar o trabalho dos cientistas, mostrando quanto há de heroísmo e altruísmo em sua busca pelo progresso. Com meus livros, procuro também atuar em outro front importante: revelar às pessoas que a ciência pode ser divertida, surpreendente, instigante — e estar ao alcance da compreensão de todos. Muitos resistem à ciência simplesmente porque não entendem e se sentem intimidados pelo conhecimento. É preciso mostrar às pessoas que, assim como as obras-primas de um Da Vinci, o trabalho dos cientistas possui uma beleza intrínseca. Quanto mais você estiver por dentro de como uma vacina funciona, mais confiará nela.

    “Pela primeira vez, uma espécie tem em mãos o poder de manipular seus genes e influir sobre a evolução. Mas, para brincar de Deus, o ser humano precisará encarar desafios morais”

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    Seu livro celebra a revolução da biogenética, mas também adverte sobre seus riscos. Por que devemos prestar atenção neles? Pela primeira vez no planeta, uma espécie tem em mãos o poder de manipular seus genes e influir sobre sua própria evolução. Mas, para exercer o direito de brincar de Deus, o ser humano precisará encarar desafios morais.

    Quais seriam eles? Nós vamos usar as novas técnicas de edição genética com o intuito de curar ou proteger nossos bebês de doenças, ou cairemos na tentação de buscar melhorá-los, alte­ran­do os genes para gerar crianças mais altas, fortes e inteligentes? Se formos por esse caminho, entraremos em terreno perigoso. Especialmente porque a manipulação genética é um recurso caro e ainda para poucos. Os ricos terão vantagem sobre os pobres, e isso poderá dividir os seres humanos em castas genéticas. Ao eliminar a aleatoriedade na evolução de nossos genes, há o risco, ainda, de se reduzir a diversidade da espécie.

    Mas o fato de a humanidade agora deter um conhecimento com potencial para eliminar doenças e imperfeições em nossos descendentes não deveria ser comemorado? Todos os pais não titubeariam em mudar os genes de seus bebês, se tivessem a escolha de livrá-los de sofrimentos como a depressão, a esquizofrenia, a bipolaridade ou doenças terríveis como a anemia falciforme. Seria uma atitude instintual e compreensível. Para o futuro coletivo de nossa sociedade, porém, a questão é mais complexa.

    Por quê? Ao apagarmos as falhas e imperfeições de nossos genes, talvez deixemos de ter no mundo pessoas como Miles Davis, que compôs sua obra revolucionária no jazz sob influência das dores que sentia como portador da anemia falciforme, moléstia de origem genética. Ou, quem sabe, não teríamos gênios como Van Gogh, cujos problemas mentais impulsionaram a criação de pinturas visionárias.

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    Como prevenir esses efeitos colaterais? Não é realista imaginar que poderemos impedir as pessoas de utilizar a tecnologia com esse fim, nem proibir que os pais anseiem por ter filhos sãos e felizes. Mesmo que os governos tentem banir a prática, seria inútil. O ser humano usou a bomba atômica duas vezes, e depois não conseguiu mais devolver o gênio para dentro da garrafa. No caso da biogenética, há um complicador: qualquer estudante de biologia pode, com as novas técnicas, manipular genes humanos. Há dois anos, um cientista chinês editou o DNA de embriões. Ainda assim, não creio que as pesquisas devam parar. É preciso encontrar maneiras sábias e equilibradas de lidar com esse futuro que se descortina.

    Como a colaboração entre universidades e empresas contribuiu para o poderio científico dos Estados Unidos? Nos anos 1940, após o fim da II Guerra, os Estados Unidos desenvolveram um fantástico modelo de inovação, com financiamento público de pesquisas nas universidades e investimentos maciços em ciência básica — aquela que é movida apenas pela curiosidade, não por objetivos práticos. Quando algo revolucionário é descoberto, as corporações privadas passam a entrar no jogo em parcerias com os cientistas, extraindo resultados concretos da invenção. É um sistema que permite o progresso das ideias inovadoras desde seu estado puro até patentes lucrativas que vão impactar na vida das pessoas.

    No caso da técnica de edição dos genes, o resultado veio de pequenos passos dados por cientistas em diversas partes do mundo, não apenas Jennifer Doudna. A era dos gênios individuais, como Einstein ou Newton, chegou ao fim? Na biologia, vemos como a inovação científica hoje é um esporte de equipe. Ao contrário dos dias em que Thomas Edison inventou sozinho a luz elétrica, envolve colaborações internacionais e reuniões pelo Skype e pelo Zoom. A ciência agora é, sobretudo, uma corrida onde times equilibrados disputam palmo a palmo.

    O livro mostra que os cientistas podem ser competidores ferozes. Isso é bom para a ciência? Todo progresso humano decorre de um mix de competição e cooperação. Quando James Watson e seu parceiro Francis Crick desvendaram a estrutura em formato de dupla-hélice do DNA, nos anos 1950, eles viviam uma competição encarniçada contra Linus Pauling nos Estados Unidos, e Maurice Wilkins e Rosalind Franklin, em Londres. A rivalidade acelerou a conquista. O mesmo vale para a descoberta da técnica CRISPR de edição dos genes. Jennifer Doudna competia com cientistas do sexo masculino em Harvard e no MIT (Massachusetts Institute of Technology). A briga fez com que as descobertas andassem mais rápido, mas se tornou excessiva: até hoje esses cientistas travam uma batalha por patentes na Justiça. Um efeito benéfico da pandemia foi tornar os estudiosos mais colaborativos, em nome de uma causa maior.

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    “A pandemia fez com que as pessoas valorizassem mais o trabalho dos cientistas. A melhor maneira de resistir aos ataques à ciência é celebrar seu heroísmo e altruísmo”

    Quais dificuldades Jennifer Doudna enfrentou em um ambiente ainda tão masculino quanto a ciência? Quando a jovem Jennifer decidiu que queria ser cientista, um conselheiro da escola disse que ciência não era coisa para meninas. Ela felizmente ignorou o conselho. Mais tarde, como o estudo do DNA era dominado por homens, ela se devotou ao então pouco valorizado RNA — e isso acabou sendo uma vantagem. Jennifer sabia muito bem como, no passado, seu ídolo Rosalind Franklin não recebera os devidos créditos na descoberta do DNA por ser mulher. Ao ganhar o Nobel, Jennifer exorcizou esse fantasma.

    Um famoso anúncio da Apple de Steve Jobs dizia que as ideias geniais vêm dos loucos, desajustados e encrenqueiros. O que faz um gênio, afinal? Ser um outsider, alguém que não se encaixa nas convenções, é um traço inequívoco dos gênios. Steve Jobs era filho adotivo e quando jovem se sentia deslocado e diferente dos outros. Leonardo da Vinci era filho bastardo, gay e avesso às regras. Estar à margem da sociedade deu a essas pessoas uma perspectiva singular, que lhes permitiu enxergar mais longe.

    O que as pessoas comuns podem extrair da vida dos gênios para se tornar mais inovadoras? A lição mais importante é exercitar a curiosidade. Ao nos tornarmos adultos, a maioria de nós suprime em si aquela centelha curiosa típica das crianças. Jobs, Da Vinci, Einstein e Jennifer Doudna nunca deixaram de olhar com atenção inquisidora para os fenômenos mais frugais, como o voo das borboletas ou as características das plantas. Devemos acordar todo dia e treinar nossa curiosidade a cada pequena ação, questionando quais os mecanismos por trás das coisas. E não fazer isso só pelo desejo de ganhar dinheiro — os gênios ensinam que a visão criativa deve ser livre de amarras.

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    Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729

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