Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

Sandel: Não devemos sacrificar a vida de alguns pelo bem da economia

O filósofo americano da Universidade Harvard diz que flexibilizar a quarentena é adotar um pensamento de que só o mais apto sobreviverá

Por Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h20 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Em um de seus vídeos, com mais de 11 milhões de visualizações, o professor e filósofo americano Michael Sandel perguntou a um auditório lotado de estudantes: se um bonde desgovernado está prestes a atingir e matar cinco trabalhadores desatentos numa pista, seria correto empurrar alguém na frente para sacrificar apenas uma vida e salvar as demais? Adaptado para tempos de pandemia, esse tem sido o dilema enfrentado por vários governantes no momento de definir o alcance e a duração da quarentena. Para Sandel, a resposta é evidente: a defesa da retomada das atividades econômicas neste momento reflete um pensamento social darwinista em que só os mais aptos sobreviveriam. “Deveríamos resistir à ideia utilitária de sacrificar a vida de alguns pelo bem de tentar reabrir a economia”, afirma ele, que critica a forma como os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump têm conduzido o combate à Covid-19, especialmente a posição de ambos em subestimar o perigo da doença e as tentativas de desafiar a autoridade dos governadores em relação ao distanciamento social. Nesta entrevista a VEJA, o professor da Universidade Harvard chama a atenção para o perigo do populismo em momentos de crise como a que o mundo atravessa e para a importância de um Poder Judiciário forte e independente, capaz de se contrapor a arroubos autoritários.

    Manter o isolamento social ou retomar as atividades econômicas? Temos esse debate nos Estados Unidos. Alguns estão perguntando se devemos enviar as pessoas de volta ao trabalho e à escola, mesmo que isso signifique que algumas delas vão morrer. Há uma discussão sobre se devemos sacrificar pessoas vulneráveis para que possamos retomar a atividade econômica e permitir o retorno ao trabalho. Eu não aceito essa escolha. Se concordarmos que a vida humana é preciosa, não podemos sacrificá-la. O ganho econômico não deve ser comprado com a perda de vidas.

    Esse debate é um típico exemplo do “dilema do bonde”? Sim. Esse é um teste clássico do pensamento moral utilitário: é correto sacrificar algumas vidas em prol da maior felicidade para outras? Creio que não devemos usar esse modo utilitário de pensar para decidir como lidar com a crise atual. Deveríamos resistir à ideia de sacrificar a vida de alguns pelo bem de tentar reabrir a economia. Isso leva a um tipo de pensamento social darwinista — a sobrevivência do mais apto. Devemos respeitar a liberdade individual, mas não a ponto de permitir comportamentos irresponsáveis que colocam em risco a saúde pública.

    O senhor acha mesmo que o Estado deve regular o direito fundamental dos cidadãos de ir e vir? A liberdade individual é importante. Mas ir à praia e espalhar um vírus contagioso causa danos a outras pessoas e à saúde pública. Essa é uma falha grave da preocupação com o bem comum. As cidades e os estados têm a responsabilidade de educar os cidadãos, especialmente os jovens, sobre a importância do distanciamento social durante uma pandemia. Exercer alguma restrição ao cumprimento de nossos desejos imediatos — como o de ir à praia, por exemplo — é uma parte importante do respeito aos concidadãos e da promoção do bem comum.

    “Uma liderança forte em uma pandemia como esta requer qualidades de empatia e caráter que muitas vezes parecem ausentes nas respostas de Trump e Bolsonaro à crise”

    Nesse caso, a liberdade de escolha não seria uma ideia ilusória? Os requisitos legais para permanecer em nossas casas durante a pandemia podem ser coercitivos, mas a questão é se essa coerção é justificada. Eu diria que, sim, é justificada. Não devemos insistir na escolha individual, independentemente das consequências. E durante a crise deveríamos estar dispostos a sacrificar festas com amigos, a fim de proteger a saúde dos mais vulneráveis e da sociedade como um todo.

    Continua após a publicidade

    O que é um bem comum em meio à crise provocada pelo coronavírus? No contexto da pandemia, o bem comum significa compartilhar os riscos, proteger os mais vulneráveis e tentar encontrar uma maneira de ajudar um ao outro no momento em que nossas condições econômicas e de saúde enfrentam sérios desafios. No meu novo livro (A Tirania do Mérito, editora Civilização Brasileira), discuto o significado do bem comum e tento mostrar que, quando os bem-sucedidos acreditam que são os únicos responsáveis por seu sucesso, torna-se muito difícil argumentar juntos como cidadãos sobre o que devemos uns aos outros. Nas últimas décadas, os vencedores da globalização passaram a acreditar que suas realizações são de sua própria responsabilidade e que, por seu sucesso, não são devedores da comunidade. Essa atitude é prejudicial para o bem comum, que é uma questão sobre como vivemos juntos em sociedade, compartilhando os benefícios e encargos.

    O senhor defende a solidariedade como uma virtude cívica. O que seria exatamente isso? Em tempos difíceis como estes, a solidariedade requer sacrifício compartilhado. Isso significa que os cidadãos mais privilegiados devem compartilhar o sacrifício que os trabalhadores comuns estão fazendo quando perdem seus empregos ou perdem salários ou correm risco à saúde. Eu acredito que os membros ricos e poderosos da sociedade não devem ficar isentos de sacrifício.

    Qual o papel da Justiça em momentos de crise como esta provocada pela pandemia? É importante não desistir do Estado de direito, mesmo durante uma emergência. Nos períodos de crise, há uma tendência de o poder Executivo crescer, às vezes em uma extensão perigosa. Por isso, é importante que o Judiciário permaneça forte e independente, mesmo durante uma crise de saúde pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, o presidente Donald Trump afirmou que, como presidente, tem autoridade “absoluta” para enviar as pessoas de volta ao trabalho e à escola em todos os estados. Mas isso é contrário a nossa Constituição, que dá aos governadores dos estados, e não ao presidente, a autoridade para decidir se as escolas e os negócios permanecerão fechados. Espero que o presidente Trump recue dessa reivindicação excessiva de autoridade. Mas, se não o fizer, é importante que a Suprema Corte faça cumprir a Constituição e os limites que impõe ao poder presidencial.

    O Brasil enfrenta um debate muito parecido. Existem muitas semelhanças nas respostas de Donald Trump e Jair Bolsonaro à crise do coronavírus. Ambos procuraram subestimar ou minimizar o perigo do vírus. Eles também desafiaram a autoridade dos governadores e estados ao exigir distanciamento social. Ambos ficaram frustrados com especialistas em saúde e médicos cujas opiniões contradizem as deles. Uma liderança forte em uma pandemia como esta requer qualidades de empatia e caráter que muitas vezes parecem ausentes nas respostas de Trump e Bolsonaro à crise.

    Apesar de tudo, ambos continuam com bons índices de aceitação, o que tem catalisado a polarização política. Este é um momento de profunda desigualdade e intensa polarização. Os cidadãos estão frustrados e irritados com o establishment político. Essa raiva e frustração levaram à eleição de Trump e Bolsonaro. E assim a pandemia chegou em um momento em que há muito pouca confiança no governo. Nossa maior esperança é que essa crise nos lembre de nossa dependência mútua, de nossa vulnerabilidade compartilhada, e nos aponte para uma solidariedade renovada, uma sensação de que estamos todos juntos nisso.

    Continua após a publicidade

    Alguns estudiosos defendem a ideia de que o mundo será diferente depois da Covid-19, especialmente na economia. O senhor concorda? Estamos vendo o Estado desempenhando um papel maior na economia. Ainda não se sabe se isso continuará após a passagem da pandemia. Mas é possível que, depois de quatro décadas de conduta pouco intervencionista do governo, esta crise marque um ponto de virada, lembrando aos cidadãos que os governos têm um papel importante a desempenhar e que não podemos deixar tudo para os mercados. Em vários países, incluindo o Reino Unido, a Dinamarca e a Holanda, o governo está pagando de 75% a 90% do salário dos trabalhadores, para que as empresas possam reter seus funcionários e não demiti-­los. Nos Estados Unidos, o seguro-­desemprego foi ampliado durante a crise para ajudar os trabalhadores desempregados. Até o governo Trump concordou em pagar pelo tratamento médico das vítimas de coronavírus que não possuem plano de saúde.

    “Durante os períodos de crise, há uma tendência de o Poder Executivo crescer, às vezes em uma extensão perigosa. Por isso, é importante que o Judiciário permaneça forte e independente”

    Os níveis de pobreza nos países em desenvolvimento, como o Brasil, podem retroagir a até trinta anos. É possível evitar isso? Uma maneira de evitar esse cenário é incentivar a cooperação global e apoiar organizações que ajudam os países em desenvolvimento a combater o coronavírus. É muito lamentável que o presidente Trump tenha cortado o financiamento dos EUA para a Organização Mundial da Saúde (OMS) no meio da pandemia. No momento em que os países em desenvolvimento precisam de ajuda para combater a pandemia de Covid-19, os países ricos devem aumentar, e não diminuir, o apoio às iniciativas globais de saúde pública.

    Como as fake news se inserem neste processo que estamos atravessando? Durante uma crise de saúde pública, é essencial fornecer informações precisas, principalmente quando elas partem de seus governantes. É muito importante que os cidadãos possam confiar no que seus líderes e seu governo estão dizendo. Em uma crise, a confiança pode ser uma questão de vida ou morte. Espalhar notícias falsas ou falsas esperanças pode prejudicar a confiança e a credibilidade, que são essenciais durante um período de crise.

    As suas palestras na Harvard viralizaram na internet e foram vistas em todo o mundo. Qual o impacto do coronavírus na educação de crianças e jovens? A pandemia obrigou os educadores a confiar cada vez mais nas aulas on-line e no ensino a distância. Quando disponibilizamos gratuitamente o meu curso on-line, o nosso objetivo foi mostrar que o ensino superior deveria ser um bem público, não apenas um privilégio privado. Eu nunca imaginei que milhões de pessoas assistiriam a palestras sobre filosofia. Durante a crise, não temos alternativa a não ser confiar no ensino a distância e na educação on-line. Mas não podemos esquecer a importância da conexão entre as pessoas, especialmente entre professores e alunos.

    Continua após a publicidade

    Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Veja e Vote.

    A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

    OFERTA
    VEJA E VOTE

    Digital Veja e Vote
    Digital Veja e Vote

    Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

    1 Mês por 4,00

    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

    a partir de 49,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.