No início da tarde do domingo 20, o cardiologista Roberto Kalil Filho fez um lanche rápido em um dos restaurantes do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, depois de ter passado a manhã em visitas a pacientes lá internados. Horas depois, receberia no mesmo hospital o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva para submetê-lo à extração de uma lesão benigna na garganta detectada dias antes, em um check-up. Kalil é médico de Lula há 31 anos, tempo suficiente para terem se tornado amigos. Agora, para o terceiro mandato do presidente eleito, o especialista foi convidado para integrar um comitê de médicos que tem como meta apresentar propostas para melhorar o sistema de saúde no país. Kalil se diz otimista. “Lula está pronto”, garantiu, tecendo elogios ao apoio que ele recebe da mulher, Rosângela Lula da Silva, a Janja, nesta entrevista concedida a VEJA em seu consultório no Sírio, pouco antes de atender o presidente eleito. No dia seguinte, voltou a conversar com a reportagem para contar como a intervenção havia transcorrido e afastou os boatos de que o câncer havia retornado.
Correu tudo bem com o procedimento na garganta de Lula? Sim. Foi rápido e um sucesso. A lesão não está mais lá. Era algo benigno e a extração mostrou ausência de qualquer malignidade.
Ele precisará fazer repouso ou tomar algum cuidado adicional? Vai ter de respeitar apenas um repouso de voz durante alguns dias. Nada além disso.
E a rouquidão persistente que apresenta? O presidente a manifesta faz tempo, mas não há problema algum. É preciso lembrar também que, durante a campanha, forçou a voz, falando muito.
Como está a saúde em geral do presidente eleito? Lula está muito bem. Ele fez uma avaliação clínica completa envolvendo a parte cardiológica, urológica, tudo. Está ótimo. E faz ginástica. A disposição dele é invejável. Também há boas notícias em relação ao tumor que teve na laringe (em 2011, passou por três ciclos de quimioterapia). Avalio que a chance de voltar é muito baixa.
A que o senhor atribui a vitalidade física de Lula? Ele se cuida. Além disso, tem a Janja. Ela é sua grande companheira. É seu estímulo, porto seguro e felicidade. Está sempre do lado dele. No procedimento de domingo, por exemplo, Janja não saiu de perto. Acompanhou tudo, passou a noite no hospital. Nós brincamos que, quando auscultamos o coração dele, o som que ouvimos é “Janja, Janja”.
Então, do ponto de vista físico e mental ele está pronto para encarar quatro anos à frente da Presidência da República? Sim. Lula tem saúde e a Janja do seu lado. Essa combinação será muito importante para ajudá-lo nos próximos anos.
Foi o próprio presidente que o convidou para fazer parte do comitê para assessorar a equipe de transição na área da saúde? Não. Foi o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. Ele não fez nenhum pedido especial. E nós, médicos, sabemos que podemos ajudar muito.
“Lula se cuida. Além disso, tem a Janja sempre ao seu lado, sua grande companheira. Nós brincamos que, quando auscultamos o coração dele, o som que ouvimos é ‘Janja, Janja’”
Quais as propostas que levarão aos responsáveis pela transição nesse campo? Primeiro, iremos fazer um diagnóstico do que consideramos importante. Em seguida, vamos propor iniciativas para a saúde do país. O grupo é formado por médicos experientes e que conhecem bem as áreas públicas e privadas de atendimento. Eu mesmo trabalho há 35 anos no sistema público.
Já começaram o levantamento? Fizemos duas reuniões na última semana e enviaremos as primeiras propostas até o começo de dezembro ao relator, o ex-ministro José Gomes Temporão. Neste momento, estamos definindo prioridades. Sabemos que não adianta fazer mil propostas para melhorias mirabolantes porque aí nenhuma vai dar certo. Por isso, nossa meta é selecionar três pontos que consideramos mais relevantes e viáveis. Já definimos que o primeiro é a saúde digital.
Por quê? É um tema fundamental hoje. E não falamos apenas da telemedicina, mas de várias opções que tornam ensino, diagnósticos e tratamentos mais acessíveis. Os resultados são ótimos. Vamos investir em propostas factíveis e sem muito custo.
De que maneira investir em saúde digital ajudará o Sistema Único de Saúde (SUS)? Ajuda demais. Veja o exemplo da telemedicina, um sucesso na pandemia, auxiliando na transmissão de orientações, diagnósticos e tratamentos, inclusive em unidades de terapia intensiva (UTIs). No Instituto do Coração, além de cursos de treinamento e capacitação de equipes médicas, houve a coordenação de um programa de teleconsultoria em unidades de tratamento intensivo no estado de São Paulo do qual participaram 37 UTIs de hospitais da rede pública, entre maio de 2020 e novembro de 2021, período crítico da pandemia.
É comum ouvir a crítica de que o que falta à saúde pública não é dinheiro, é boa gestão. O senhor concorda? Não há dinheiro. Os recursos destinados ao SUS são muito reduzidos. Quando o sistema foi criado, em 1988, já nasceu subfinanciado. A verba que deveria servir para mantê-lo funcionando viria do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (órgão que atendia os trabalhadores que contribuíam com o sistema). Mas nunca chegou.
Como resolver o problema do subfinanciamento? Nós vamos ter de trabalhar com a noção de que não haverá muito mais recursos do que os existentes. Mas a questão, no longo prazo, é: o SUS precisa ser remodelado e fortalecido. A pandemia deixou claro a importância desse sistema. Milhões de pessoas foram salvas por causa do SUS. Os profissionais de saúde foram heróis e não podem ser esquecidos.
O senador Humberto Costa (PT), que participa da transição, citou a possibilidade de reativar o programa Mais Médicos, porém com profissionais brasileiros em vez de cubanos. O que o senhor acha? Concordo. Há pesquisas mostrando que o maior desejo dos mais carentes é ter um médico que o atenda. Contudo, é preciso fazer a alocação de profissionais em locais onde existam recursos com os quais trabalhar. Nesse ponto, o suporte da saúde digital pode ser de grande ajuda. A construção de um plano de carreira é outro estímulo. Com isso, talvez se consiga manter um médico em regiões mais distantes e carentes.
Qual sua expectativa para o próximo governo? Sou otimista. Na área da saúde, sei que posso ajudar e, pela proximidade que tenho com o presidente, disponho de meios para ser mais ativo. Sou experiente e tenho a obrigação de dar sugestões, cobrar, sempre no bom sentido.
O senhor aceitaria ser ministro? Não. Meu perfil é o de ajudar. Quero auxiliar quem for escolhido.
Qual seria o melhor perfil para um ministro da Saúde? Isso cabe ao presidente decidir. Mas a classe médica tem de colaborar. A pandemia foi um bom exemplo de que, quando há união, as coisas funcionam. Houve a cooperação das associações e sociedades médicas, da imprensa, dos governos estaduais, e não podemos perder isso. O novo ministro tem de ouvir todas as vozes. Não se espera que fique ilhado no prédio do ministério.
Qual o balanço que o senhor faz da condução do combate à pandemia? Ela mostrou a fragilidade dos sistemas de saúde do mundo. Ninguém estava preparado, nem a Organização Mundial da Saúde. Aconteceu uma catástrofe. Agora, é preciso tirar lições e aprender.
Quais os ensinamentos mais importantes que podem ser tirados da crise sanitária? A lição de maior impacto foi a união das pessoas. Além disso, a pandemia também trouxe conquistas importantes, como o tempo recorde para a aprovação de medicamentos e vacinas. Isso tem de ser estimulado e deve continuar. Ela evidenciou ainda a importância da vacinação. Infelizmente, somente 60% dos vacinados tomaram dose de reforço. É função da mídia, dos governos, de todos, estimular as pessoas a se vacinarem, e não só contra a Covid-19.
“Será preciso trabalhar com a noção de que não haverá muito mais recursos do que os existentes. Mas a questão é: o SUS precisa ser remodelado e fortalecido”
Estamos preparados para uma nova pandemia? De jeito nenhum. Um exemplo claro: a varíola dos macacos. Deu-se à doença o nome da varíola dos macacos, mas ela não é do macaco (o vírus é transmitido por roedores). Aí a OMS quis mudar a denominação e já começou a confusão. E estamos falando de uma doença que existe há décadas. O caso é um espelho do despreparo geral.
O senhor teve Covid-19 logo no início da pandemia. Como foi? Quase morri. Depois do terceiro dia internado, não aguentava mais. Tinha dores horríveis no corpo todo. Liguei para o meu médico, o David Uip (infectologista, atual secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde de São Paulo e amigo de longa data de Kalil). Eram 3 horas da manhã. Disse a ele: “David, quero morrer”. Ele ficou muito bravo. Respondeu: “Ótimo. E você quer morrer em quantos minutos?”. Eu disse: “Rápido”.
Como o doutor Uip resolveu isso? Ele me disse: “Ótimo, é o tempo de eu chegar aí no hospital e te jogar pela janela. E então você não me enche mais”. No dia seguinte, ele não apareceu no meu quarto para a visita diária. Em vez disso, mandou o assistente. Perguntei se o David não iria me ver. A resposta do assistente foi: “Se o doutor Uip vier te ver, ele te mata, porque está revoltado com seu discursinho da madrugada”. Quando tive alta e já tinha voltado para casa, comecei a sentir medo e liguei para ele, pedindo para ser internado de novo. Ele disse que não atenderia mais meus telefonemas. Mas, falando sério, foi horrível. Nunca havia passado por uma situação como aquela.
A experiência mudou algo na sua atitude em relação aos pacientes? Nada. Sempre estive muito perto de todos eles. E não mudei nada na minha vida também. Continuo o mesmo ranzinza de sempre.
O senhor acompanhou centenas de pacientes. Como classifica esse período? Sofro quando perco um paciente. Naquela época, perdia três, quatro por dia. Foi a época mais dramática da minha carreira.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817