Mesmo para um setor acostumado a turbulências, com margens de lucro apertadas e no qual empresas outrora poderosas acabam desaparecendo, os últimos dois anos foram atipicamente duros para a aviação mundial. Além da pandemia de Covid-19, que interrompeu o fluxo de pessoas mundo afora (e só agora começa timidamente a voltar), o preço do petróleo virou outro fator de preocupação para essas companhias. Em meio a tudo isso, a Latam, que retomou a liderança do mercado brasileiro em agosto, sentiu o baque de forma especialmente forte, o que a levou a um processo de recuperação judicial nos Estados Unidos — e do qual pretende sair nos próximos meses. Pressionada também pela disparada do dólar, a empresa ainda enfrentou nos últimos dias uma crise com a exposição nas redes sociais de imagens envolvendo a morte de um cachorro que transportava no porão de um de seus aviões entre São Paulo e Rio. À frente de tantos problemas, o paulistano de origem francesa Jerome Cadier, CEO da Latam no Brasil, falou a VEJA sobre os desafios de pilotar uma grande operadora aérea num cenário de tanta instabilidade e incertezas.
Há duas semanas houve uma intensa comoção nas redes sociais por causa de um filhote de cachorro que morreu logo após desembarcar de um avião da Latam. Como foi enfrentar essa crise em meio a um período tão delicado para a empresa? Eu e todo o time da Latam lamentamos profundamente o ocorrido com o filhotinho Zyon. Mesmo tendo seguido todos os procedimentos previstos tanto na lei quanto nos regulamentos de transportes de animais de estimação, esse caso nos fez olhar com mais profundidade para o nosso serviço. Por isso, estamos revendo os nossos processos, para poder elevar o padrão que as companhias aéreas oferecem hoje. Estamos conscientes de que na aviação as melhorias precisam acontecer todos os dias.
Simultaneamente a esse fato triste houve uma boa notícia. Os Estados Unidos anunciaram que estão se abrindo aos brasileiros. O que isso significa para a empresa? Ainda não sabemos quais vacinas serão aceitas, mas só essa notícia, de um dia para o outro, aumentou a procura das passagens para os Estados Unidos em 350%. Além disso, a Argentina, que estava restringindo a quantidade de passageiros diários, também se abriu. O mesmo aconteceu semanas atrás com o Peru. É óbvio que vai ser uma recuperação lenta, porque as viagens internacionais demandam mais planejamento, mas ela está acontecendo. A nossa estimativa é de que só vamos voar no mercado internacional o mesmo que na pré-pandemia, provavelmente, no fim de 2023. No doméstico, já estamos chegando ao patamar anterior no fim do ano.
Uma vez que a demanda seja retomada, as empresas aéreas estarão prontas a responder com a oferta desejada? Estamos prontos para recuperar a capacidade bastante rápido. Temos hoje aviões que podem voar mais. Alteramos muito a nossa frota internacional. Retiramos o Airbus 350 de operação e estamos trazendo para o Brasil o Boeing 787 Dreamliner, que antes não voava com tripulação brasileira. Hoje é bem mais complexo viajar para fora. Fui para a Europa nas últimas semanas, passei em dois países, e as regras são diferentes. Em um país você precisa disso, no outro, daquilo. Para voltar ao Brasil, precisa de uma terceira coisa. Então, é preciso mais planejamento e tempo para se normalizar a demanda por viagens internacionais.
“Passaremos por uma recuperação difícil no pós-pandemia, porque o preço médio da passagem vai ser mais baixo. Precisamos ser mais eficientes, ou não conseguiremos competir”
No mundo, existe um movimento negacionista que pode prejudicar a segurança e a tranquilidade dos voos. A Latam já chegou a não deixar alguém embarcar por causa disso? Os protocolos são super-rígidos. A gente já teve de retirar passageiro do avião por não querer usar máscara. A gente pede, reforça a necessidade. Às vezes, o passageiro até veste a máscara, mas puxa o nariz para fora. A gente vai, pede para usar corretamente. Algumas vezes, e não foram poucas, chegamos a desembarcar o passageiro. Isso é levado a ferro e fogo. E o brasileiro, nesse aspecto, é bastante disciplinado. Para algumas companhias americanas, por exemplo, tem sido mais difícil, é mais frequente e tem mais discussão. No Brasil, os casos são muito raros. E até o desembarque mudou. Eu voei agora pela Iberia, entre Madri e Genebra, e foi um caos, um empurrando o outro na saída. Na volta, o desembarque aqui no Brasil foi extremamente ordenado — coisa que nunca acontecia.
Isso é surpreendente, porque os voos envolvendo brasileiros costumavam ter a fama de ser mais confusos. Antes, quando o avião parava, todo mundo ficava em pé e sempre tinha aquela aglomeração. Agora, o brasileiro está supercalmo. A gente está conseguindo desembarcar por grupos de fileiras e estamos pensando até em permanecer com isso, quando as restrições acabarem, porque está tudo muito mais ordenado. Eu teria imaginado uma coisa diferente no começo da pandemia, mas o público brasileiro tem se comportado muito bem.
A oferta de destinos da Latam mudará por causa da pandemia? Houve um enorme redesenho das rotas. Olhando para a frente, haverá muito mais turistas do que antes e, na proporção, menos viajantes de negócios. Agora, temos quase um viajante “híbrido”. É alguém que viaja a turismo, com a família, mas que continua trabalhando a partir do destino, de forma remota. Isso nos fez repensar muito para onde a gente voa, com que frequência, em qual horário, e também como precificar as passagens. Antes, você sabia que quem comprava passagem com seis meses de antecedência era o turista, e ele pagava um preço médio mais baixo. Quem comprava com duas semanas de antecipação, normalmente, era o viajante de negócios, que aceitava pagar mais. A política de preços é diferente para esses dois públicos. Hoje, tem turista que compra mais em cima da hora.
Para o passageiro parece ótimo, mas e para as empresas aéreas? Vamos ter uma recuperação mais difícil porque o preço médio das passagens vai ser mais baixo. Então, precisamos nos reestruturar, ser mais eficientes, ou não vamos conseguir competir. Muito do que fizemos nos últimos dezoito meses foi esse trabalho de eficiência, de fazer melhor, com menos custos. A reestruturação tem sido muito boa, senão não conseguiríamos abrir rotas e contratar como estamos fazendo. Antes da pandemia, a Latam voava para 44 destinos domésticos e, ao fim do primeiro trimestre de 2022, vai chegar a 56, mesmo que com uma frequência um pouco menor. E vamos contratar 2 000 pessoas até o fim do ano.
Os aumentos de custos de operação com a alta do dólar e do petróleo serão repassados para as passagens? O dólar e o combustível estão muito caros. Cerca de 60% dos custos de qualquer companhia aérea são atrelados ao dólar. Além disso, o Brasil tem uma característica de taxar muito o combustível aéreo, que aqui é o mais caro do mundo. Em reais, o preço das passagens está no mesmo patamar de antes da pandemia, mesmo com a inflação dos últimos tempos. A tendência, nos últimos quatro meses, foi de recuperação de preços, à medida que a demanda doméstica aumentou. No internacional, os preços estão mais baixos e a gente ainda espera uma recomposição, à medida que as fronteiras vão se abrindo.
Por que, diferentemente do que aconteceu em outros países, a ajuda governamental às empresas aéreas durante a pandemia não funcionou no Brasil? Eu, obviamente, gostaria de ter visto aqui o que vi nos Estados Unidos, onde o governo não só emprestou como deu o dinheiro para as aéreas. Mas o Brasil tem problemas muito mais básicos e profundos. Então, se eu tirar o meu chapéu de presidente de uma companhia aérea e colocar o de cidadão brasileiro, fica difícil defender subsídios ao setor. Não acho certo. Talvez a Azul gostaria disso porque o presidente deles, John Rodgerson, é americano. Eu sou brasileiro. A gente tem de defender a condição de competitividade, de redução da carga tributária. O nosso setor gera emprego direto, gera turismo e desenvolvimento de serviços. Para cada emprego numa companhia aérea são gerados dez indiretos. E todas as empresas europeias e americanas que receberam ajuda de governos estão agora muito mais endividadas, mesmo porque não precisaram fazer a reestruturação do porte que fizemos aqui.
Sem essa ajuda, a Latam optou por abrir uma recuperação judicial nos Estados Unidos. Como está o cronograma desse processo? Ele caminha bem. O processo está numa fase importante. Encaminhamos um plano de recuperação para os próximos cinco anos. Quem está interessado em investir na companhia oferece uma proposta de financiamento e as suas condições. Agora, pegamos essas várias propostas e vamos avaliar qual é a melhor.
“Todas as propostas que recebemos no processo de recuperação judicial estão acima dos 5 bilhões de dólares. A Azul tem capacidade para isso? Eu não sei”
Houve proposta de compra por parte da Azul? Recebemos várias propostas, o suficiente para nos dar opções. A Azul demonstrou, por meio de pronunciamentos à imprensa, interesse em nos comprar. Mas não existe proposta. Nenhuma das que recebemos envolve a Azul. Não sei se ainda vem alguma coisa. Os nossos principais credores, porém, estão todos dentro delas. Todas as propostas que recebemos estão acima de 5 bilhões de dólares. Não é dinheiro de pinga. Estamos falando de recursos significativos no mercado. A Azul tem acesso a isso, capacidade de levantar 5 bilhões de dólares? Eu não sei.
Poderia haver problemas com os órgãos de proteção da concorrência nessa fusão? Seria muito pouco crível que nenhum órgão regulador, do Brasil, do Chile (onde fica a sede da Latam) ou dos Estados Unidos, não questione uma concentração de mais de 70% do mercado. Mesmo que o concorrente levante que isso é bom para o Brasil, não vi nenhuma análise séria de que isso seria verdade. A fusão seria boa para o acionista da Azul, que vai poder praticar um preço mais alto, mas não para os acionistas da Latam ou para o consumidor brasileiro. O presidente da Azul diz que o Brasil precisa de empresas fortes. Querido John Rodgerson, as três empresas que estão no Brasil já são fortes. O mercado nacional é o quinto maior do mundo e as três empresas já deram provas de sua capacidade. A demanda só cresce. Em 2002, havia 30 milhões de passageiros no país. Em 2016, já eram 100 milhões. E isso vai continuar. O prognóstico é positivo. Poucas indústrias crescem tanto e têm tanto potencial. Por isso, as empresas apostam e investem no setor aéreo.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758