Aos 48 anos, Andrii Melnyk recém desembarcou em Brasília para ocupar a cadeira de embaixador da Ucrânia, vaga havia dois anos. Espantou-se com o que, bem ao seu estilo sem travas na língua, chama de “selva política”. “Não é trivial caminhar aqui nos corredores do poder”, avalia o diplomata, que exerceu altos cargos em Kiev — entre eles o de vice-ministro das Relações Exteriores, durante a invasão russa. Melnyk, que vivia ao pé do ouvido do presidente Volodymyr Zelensky, foi quem martelou ao amigo a relevância da América Latina, e do Brasil, no tabuleiro geopolítico rachado pelo conflito que se arrasta desde 2022. Com uma carreira de mais de duas décadas, o advogado de formação também comandou por oito anos a embaixada na Alemanha, de onde acabaria afastado após se pronunciar contra o que viu como resistência do país em apoiar os ucranianos. “Uma salsicha de fígado ofendida”, chegou a disparar contra o chanceler Olaf Scholz. Na nova missão, promete não perder a franqueza nas costuras de bastidores, que adora. “Queremos envolver o Brasil como um grande player”, avisa Andrii, na luta para aprender o português.
Com a eclosão do conflito entre Hamas e Israel, o presidente Zelensky tem a preocupação de que o mundo desvie os olhos da guerra na Ucrânia? A brutalidade no Oriente Médio requer toda a atenção, mas não seria sincero dizer que está tudo bem na Ucrânia. Não é impossível que a invasão russa pareça algo menor diante da nova guerra. No entanto, Rússia e Hamas são duas faces da mesma moeda, ambas mirando destruir a ordem mundial tal qual a conhecemos. Não podemos deixar que a postura de Moscou vire o novo normal nem tampouco que a crueldade do Hamas se espalhe. O mundo está mais explosivo e, a cada conflito, regras e acordos que sustentam a civilização vão ruindo, o que abre espaço para a barbárie. O cenário exige uma resposta global.
Zelensky acusou a Rússia de dar apoio aos ataques realizados pelo Hamas em Israel. Não foi precipitado, visto que não há provas? Não me surpreenderia se, nos próximos dias, surgirem evidências de que Moscou ajudou os terroristas. Essa investida inesperada em grande escala, tanto em envergadura quanto em violência, não poderia ocorrer sem que o Hamas tivesse instrução militar de quem conhece a guerra moderna. E eles utilizaram táticas semelhantes às dos russos, se voltando contra civis, com o objetivo de incitar o terror. Olhando o tabuleiro mais amplo, quem se beneficia com o conflito? Certamente Vladimir Putin, já que a atenção foi desviada da selvageria na Ucrânia. Após os ataques em Israel, havia um clima de festa nos canais de propaganda russos.
Com a promessa dos Estados Unidos de enviar armas e munições a Israel, será que a decisiva ajuda bélica dos americanos à Ucrânia ficará comprometida? Recebemos garantias de nossos principais aliados, entre eles os Estados Unidos. Agora, é óbvio que os recursos de nossos parceiros não são ilimitados. Esperamos que a ajuda militar que nos é tão crucial para a sobrevivência não atrase ou seja reduzida com o direcionamento de forças para Israel.
“O mundo está mais explosivo e, a cada conflito, regras que sustentam a civilização vão ruindo e semeando a barbárie. O cenário exige uma resposta global”
Em meio a críticas pelos resultados da aguardada contraofensiva ucraniana, o Congresso americano congelou o aporte a Kiev. É um sinal de que o apoio ocidental anda estremecido? O assunto está mais delicado agora, sobretudo nos Estados Unidos, com as eleições presidenciais. Isso traz preocupação, claro. Mas ajudar a Ucrânia corresponde aos interesses nacionais americanos. Se a Rússia vencer, emitirá uma terrível mensagem à democracia.
A contraofensiva ucraniana foi alardeada como um ponto de virada na guerra. Por que não ocorreu como esperado? Estávamos apenas tentando deter o inimigo. Aí tomamos a iniciativa, e lá se vão meses desde que os russos não têm o que mostrar em resposta. Mas é um processo difícil. O mundo nunca viu tamanha densidade de campos minados, com quilômetros de profundidade, o que torna a movimentação altamente complexa. E faltam armas, que chegam a conta-gotas. Dos jatos prometidos, não há sinal.
O inverno se aproxima outra vez e, com ele, há expectativa de mais ataques russos a infraestruturas vitais de energia. O que fazer para que não se repita o drama do ano que passou? Vamos proteger melhor nossas mais importantes centrais elétricas, bem como as grandes cidades. Queremos evitar aqueles apagões, que eu mesmo testemunhei em Kiev. Parece um filme de terror: ruas desertas e sem luz, termômetros a 15 graus negativos, sem aquecimento nem água por dias.
Nos últimos meses, aumentaram os ataques com drones dentro do território russo. O plano é levar a guerra a Putin? Putin e a sua panelinha construíram quase um consenso na sociedade de que seu país corre perigo, ameaçado pela malvada Otan. Tivemos que encontrar uma forma de fazer a população comum compreender que se trata de uma guerra real, não de uma operação militar especial, combatendo a cegueira que reina por lá. Lembrando que a Ucrânia tem o direito de atacar o território russo. Moscou é o agressor.
O Brasil ficou sem embaixador da Ucrânia por quase dois anos. Houve negligência por parte do governo brasileiro ou não era prioridade para a administração Zelensky? Posso garantir que não era do nosso interesse que não houvesse embaixador no Brasil, especialmente depois da invasão russa. O mais importante agora é que, pela primeira vez, Zelensky nomeou um conselheiro próximo como embaixador. Isso deve ser compreendido pelas autoridades brasileiras como um sinal político bastante positivo.
Quando era embaixador da Ucrânia em Berlim, o senhor fez ácidas críticas ao que via como um apoio alemão pífio, o que lhe custou o posto. Será duro também com o Brasil? Não posso me esconder atrás de belas palavras diplomáticas que não ajudam ninguém. Estava frustrado com a participação da Alemanha, que agia sem determinação por sua dependência econômica da Rússia. No Brasil, o desafio é outro. Preciso convencer os governantes de que não podem varrer a guerra para debaixo do tapete. Zelensky me pediu para tentar colocar o conflito na agenda da cúpula do G20, no Rio, e disse: “Os brasileiros são importantes pela sua capacidade de atrair o Sul Global”.
Como acha que o Brasil pode contribuir de forma prática? O Brasil poderia encontrar um papel no campo humanitário, como fez ao enviar kits para a Faixa de Gaza. E isso não significa que entrou na guerra contra Israel. Não comprometeria em nada o possível papel do país como mediador, só o fortaleceria.
Existe mesmo a possibilidade de o governo Lula se tornar mediador do conflito? Levamos a sério a proposta de Lula. O Brasil tem poder e uma janela de oportunidade para exercê-lo. Agora, se Lula tem a ambição de desempenhar esse grande papel geopolítico, como poderá ter sucesso se nem sequer foi à Ucrânia desde o início desta guerra? Não se faz diplomacia com palavras vazias. Queremos ver envolvimento real com a questão ucraniana. Precisamos de ajuda concreta.
É hora de Lula visitar a Ucrânia? Já passou da hora. Zelensky convidou-o inúmeras vezes. Cabe ao presidente do Brasil decidir qual será o formato — se irá apenas a Kiev ou também a Moscou. O que conta é sua presença, para compreender melhor a natureza desta guerra: ouvir as bombas, as sirenes e tomar contato com essa brutal realidade em pleno século XXI. Quem sabe assim poderá aperfeiçoar suas propostas para o fim do conflito.
Faltou a Lula dizer com todas as letras quem é o invasor e o invadido neste arrastado conflito? Ações são o mais decisivo, mas é claro que as palavras importam. Talvez as pessoas no Brasil, um lugar há tanto tempo sem guerra, tenham dificuldade em compreender sua verdadeira dimensão. Kiev ficaria grata em ouvir mensagens mais claras e até uma condenação explícita à Rússia vinda dos brasileiros.
Os presidentes Zelensky e Lula fizeram uma reunião bilateral às margens da Assembleia Geral da ONU, após uma série de desencontros. Havia um mal-estar entre os países? Havia muitos mal-entendidos, equívocos e turbulências. Ridículo, não? Não dava para entender por que dois chefes de Estado não conseguiam se reunir, sendo ambos tão carismáticos e parecidos, em termos de ambição e poder internacional. Poucos têm posição semelhante às de Lula e Zelensky, que conheço bem. Até abri um vinho quando o encontro aconteceu, e olha que eu nem bebo.
“Não entendia por que razão Lula e Zelensky, tão carismáticos e parecidos, não conseguiam se encontrar. Até abri um vinho quando aconteceu, e olha que eu nem bebo”
Lula disse que o Brasil não prenderia Vladimir Putin se ele comparecesse à cúpula do G20 no Rio, em 2024, contrariando uma ordem do Tribunal Penal Internacional. Depois, falou que caberia às autoridades judiciais decidir. Como esse rolo ecoou na Ucrânia? Ainda bem que Lula explicou melhor sua posição, que é justa. Afinal, é direito soberano do Brasil convidar quem quiser. Quem sabe Zelensky e Putin não se encontram por aqui.
A entrada na União Europeia ainda está nos planos? Sim. A adesão à UE está ancorada em nossa constituição, e não perdeu prioridade em meio à guerra. A previsão das duas partes é que ingressemos no bloco até 2030, quando já devemos ter feito tarefas como baixar os níveis de corrupção.
E a intenção de aderir à Otan, continua viva? Claro, é um objetivo estratégico. Se a Ucrânia tivesse conseguido aderir à Otan antes de 2022, não creio que Putin se atreveria a iniciar esta invasão. É por isso que países como Finlândia e Suécia buscaram o guarda-chuva defensivo da aliança. Não sabemos quando será politicamente viável.
O Comitê Olímpico Internacional proibiu a Rússia de competir nos Jogos de Paris e ainda vai decidir se os atletas poderão participar sob bandeira neutra. Seria uma boa solução? Não acho. O esporte é um soft power e pode se converter em ferramenta política perigosa. Os russos são muito inteligentes, por isso aproveitam todas as chances para permanecerem no palco mundial. É preciso traçar limites.
Quando acha que será possível sentar-se à mesa de negociações? Por enquanto, o que está em jogo é o campo de batalha. Se o cenário mudar a nosso favor, Putin, aí sim, poderá perceber que não conseguirá segurar a situação sozinho, e se abririam então as portas à negociação, que é como as guerras terminam. Nesse ponto, parceiros internacionais têm tudo para ajudar.
A guerra está longe do fim? Tudo o que eu gostaria é que, ao encerrar essa conversa, lesse a manchete: “Putin decidiu retirar suas tropas”. Mas a batalha ainda será longa. Quando terminar, espero que haja algum aprendizado para que o horror não se repita.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865