Marco Aurélio Mello: Balanço sem culpas
Na reta final para a aposentadoria, o decano do STF não se arrepende de nenhum voto na carreira e torce por uma terceira via em 2022
A sabedoria popular prega que todo cidadão é incendiário até uma certa idade e bombeiro a partir de outra, quando atinge a maturidade. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Marco Aurélio Mello, de 74 anos, se autodefine orgulhosamente como um soldado que marcha na direção contrária à da tropa. É sua forma de explicar a frequência com que discorda de seus colegas de plenário — dentro e fora dele. Em entrevista exclusiva a VEJA, a poucas semanas de pendurar a toga, Mello fez jus à fama de frasista sem rodeios. Ao analisar a própria atuação, diz que não se arrepende de um voto sequer na carreira. Na política, rechaça o impeachment e defende abertamente uma terceira via. Sobre Bolsonaro, define o presidente como alguém que cresceu batendo em minorias. E a atual composição do STF, está à altura da missão de preservar a Constituição? “É o tribunal que temos”, resigna-se. A seguir, os melhores trechos da conversa.
Ao longo de sua carreira no Supremo, arrepende-se de algum voto? Não, de nenhum. É possível que já tenhamos claudicado muito na arte de proceder e na arte de julgar, mas não fiz esse balanço. E, ao fim, depois que o Supremo bate o martelo, não se tem a quem recorrer.
O senhor foi muito criticado pela soltura do traficante André do Rap. Até hoje, ele encontra-se foragido. Não foi um erro? Eu indago se cumprir a lei gera arrependimento. A prisão provisória dura por noventa dias. Esse período pode ser renovado, mediante decisão provocada pela autoridade policial, pelo MP ou de ofício do próprio juiz. Defrontei-me com o processo do André do Rap e constatei que aquele período de noventa dias estava suplantado. Processo para mim não tem capa.
Ou seja, nesse caso, a lei não exige que se leve em consideração o nível de periculosidade do investigado? Quem deve levar em conta a periculosidade do agente é a primeira instância. Alguém falhou lá embaixo.
Com muita frequência o senhor é o único voto divergente em julgamentos no STF. Numa autoavaliação, o que o diferencia tanto dos demais ministros? Magistratura é opção de vida, e a coragem é a síntese de todas as virtudes. Com essa composição atual, sou um soldado que marcha em sentido inverso ao da tropa.
O que o leva a fazer duras críticas a decisões de colegas? Vamos buscar as razões que me levaram a dizer o que disse. Não ocupo cadeira voltada para relações públicas e não integro clube do bolinha, ou seja, não combino decisões. Houve uma proposta de um colega — não vou dizer de quem foi a iniciativa — para adotarmos um procedimento em casos momentosos: nos reuniríamos, acertaríamos a solução para tal caso e apenas a formalizaríamos no plenário. Eu disse ao colega: eu não integro teatro.
O senhor está completamente isolado há mais de um ano: como cidadão, como vê o presidente da República pregando que as pessoas saiam de casa e agora defendendo que o Brasil sedie a Copa América? Eu aprendi pela educação que tive em minha casa que o exemplo vem de cima. E, nesta época de pandemia, não há campo para o negacionismo, para o faz de conta que não temos 460 000 mortos. Não é conveniente para o Brasil sediar a copa que a Argentina não aceitou. Não é hora de comemorar, mas de sanear o mal maior que acomete o Brasil.
“Espero não me defrontar com essa questão (um segundo turno Bolsonaro x Lula), sou favorável à abertura do leque em termos de candidatos. E que a terceira via ocorra”
Como o senhor avalia a condução da pandemia pelo presidente Bolsonaro? Ele pode ser mesmo responsabilizado pelas mortes? Responsável não é, mas ele poderia ter evitado algumas delas.
Ao longo da pandemia, ele cometeu algum crime de responsabilidade? O senhor vê espaço para impeachment? Crime de responsabilidade, eu não examinei situação concreta. Em 2017, num seminário em Coimbra, eu tive de falar sobre essa tendência mundial de eleger-se populistas de direita — para mim, o pior tipo de populista. Na ocasião, eu disse que temia pelo Brasil eleger para presidente da República o deputado federal Jair Bolsonaro, que fez a vida batendo em minorias. Foi eleito, agora vamos esperar as eleições de 2022. Nada de apeá-lo do poder. Que ele fique na vitrine para os eleitores perceberem quem é quem.
Acredita que há risco de um golpe de Estado no futuro próximo? Com frequência, o presidente da República flerta com ameaças desse tipo. Não vejo risco. Eu atribuo as falas do presidente, assim como a fala de um dos filhos do presidente, o Eduardo Bolsonaro (sobre um cabo e um soldado serem o suficiente para fechar o STF), a arroubos de retórica. Não há campo para retrocessos. Agora, precisamos que os homens públicos e que os integrantes das Forças Armadas tenham a mesma percepção. O presidente foi eleito e é o nosso representante por quatro anos. Essa história de apear dirigente maior do país precisa acabar. A repercussão internacional é péssima.
Bolsonaro já indicou Nunes Marques e está para indicar André Mendonça ou Humberto Martins para a vaga do senhor. Ambos têm estofo para ocupar o posto? Não avalio nenhum dos dois. Ambos estão em cargos muito relevantes. Um é o advogado-geral da União e foi ministro da Justiça, e outro é presidente do STJ.
Augusto Aras está indo bem como PGR? Muitos o acusam de fazer movimentos em favor de Bolsonaro para cavar uma indicação ao STF. O cargo que ele ocupa está a todo tempo sob holofotes. Não o tenho no banco dos réus, considerada a minha atuação como julgador. Eu dou um desconto a tudo o que é veiculado, partindo do pressuposto que o doutor Aras é um homem de bem.
Como avalia o fim para onde a Lava-Jato se encaminha? Não acha que Moro cometeu erros graves? Num levantamento global, a Lava-Jato tem mais aspectos positivos do que negativos. Um pequeno desvio não pode comprometer o todo. A respeito de Moro, sem revelar o meu voto (sobre o processo de suspeição, que ainda está em curso e Mello pediu vista), eu digo que o sistema não fecha. Um herói nacional não pode se tornar execrado da noite para o dia. Eu disse, quando ele foi me visitar, que não entendia como ele havia abandonado o cargo de juiz, que ele tinha uma caneta à mão e atuava com independência maior. Ele me respondeu àquela época que a caneta dele ainda tinha muita tinta. Pelo visto, essa tinta não foi suficiente para o governo central.
E a situação de Lula, que pode chegar novamente à Presidência da República em 2022? Eu fui voto vencido quanto à competência da 13ª Vara Criminal de Curitiba para julgar os casos de Lula, mas o tribunal decidiu que o juízo não era competente. A sociedade brasileira acompanhou o julgamento do presidente Lula. Agora, voltando essas ações praticamente à estaca zero, qual é o sentimento da sociedade em relação a isso? É de segurança jurídica? Fica a pergunta no ar.
Em 2022, num eventual segundo turno entre Bolsonaro e Lula, quem terá seu voto? Espero não me defrontar com essa questão, sou favorável à abertura do leque em termos de candidatos. Vamos aguardar 2022, e que a terceira via ocorra. Não entendi esse último encontro que houve entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Lula. Não compreendi.
Qual a sensação ao chegar à reta final da trajetória de três décadas como ministro? A minha cota de serviço público já foi dada. Cheguei ao Supremo em 1990 e completo agora, no dia 13 de junho, 31 anos oficiando no tribunal, sempre na linha de frente, sempre pegando no pesado.
Do que mais vai sentir falta? Eu sinto saudade, vou confessar, da velha guarda, ou seja, do colegiado que eu encontrei em 1990, sem demérito para o atual. Mas claro que tinha, sim, um apego maior àquele colegiado que me recebeu de braços abertos.
Quais são as principais diferenças entre o Supremo que o senhor encontrou e o que o senhor está deixando? Verifico hoje que nós temos um relator e temos outros nove — porque eu me excluo — revisores. Com a velha guarda, o relator levava um voto estruturado, mas os demais integrantes votavam de improviso. Hoje em dia, ninguém vota mais de improviso, todos puxam seus votos escritos, votos muito longos. Outro fenômeno que não ocorre comigo: o relator proporciona aos colegas o voto elaborado. Então, praticamente os integrantes do tribunal vão para lá com o convencimento formado a partir desse voto, em vez de estarem soltos na bancada para ouvir os advogados, o Ministério Público e formar o convencimento na hora. Consequência disso, não conseguimos julgar um número de processos razoável. Nós ficamos duas, três sessões para julgar um único caso.
“A Lava-Jato tem mais aspectos positivos do que negativos. Sobre Moro, sem revelar o meu voto, o sistema não fecha. Um herói nacional não pode se tornar execrado da noite para o dia”
O que o senhor vai fazer ao deixar a magistratura? Alguma chance de advogar? Eu fui advogado no início, logo que me formei. Não sou homem que visa à prata pela prata. Tenho uma situação de vida muito confortável, mesmo porque o meu pai acabou deixando um patrimônio razoável. E há essa outra parte, que é a parte acadêmica, que me dá um respaldo muito grande. De uma coisa estejam certos, não vou digladiar no campo da advocacia. Jamais farei isso, mesmo porque poderei levar um chá de cadeira, ou seja, ao procurar um colega magistrado, ele poderá me deixar esperando um tempo maior na antessala.
O senhor tem filhos que advogam. O que pensa sobre as regras atuais que regem a atuação de advogados filhos de magistrados? Eu, obviamente, me afasto dos processos em que meus filhos atuam. Agora, é um problema cultural. Os jurisdicionados é que deveriam saber que a contratação de um filho de ministro não é garantia de ganho de causa. No entanto, não é bom, existe muita maledicência, fala-se que os garotos estão milionários na advocacia. Eu não sei, porque nunca integrei a Receita Federal.
O STF de hoje está à altura do papel de guardião da Constituição? O aperfeiçoamento é infindável. Que tenhamos sempre um colegiado melhor e mais bem retratado no Supremo.
Está à altura ou não está, ministro? É o tribunal que nós temos. Que cada ocupante do plenário perceba a envergadura de sua cadeira.
Publicado em VEJA de 9 de junho de 2021, edição nº 2741