No período da transição entre governos, muito se especulava sobre quem assumiria na gestão Lula a espinhosa pasta da Educação, polpuda em verbas, mas assombrada por estatísticas que põem o país no pelotão de trás do ensino no mundo. Costura daqui e dali, e eis que a cadeira acabou nas mãos de Camilo Santana (PT), 54 anos, cujo grande cartão de visita é ter sido governador do Ceará entre 2015 e 2022, anos em que o estado sedimentou sua trajetória de sucesso na sala de aula, sendo alçado ao topo do ranking nacional. Engenheiro agrônomo nascido em Crato, cidade encravada no “oásis do sertão”, Santana estreou na política há dezesseis anos, no secretariado de Cid Gomes, irmão de Ciro (sobre quem prefere não emitir opinião), e chegou a senador no último pleito. Alojado na Esplanada, onde guindou para cargos-chave nomes cearenses de sua confiança, ele já se enroscou em um embate com estados e municípios em torno do aumento de professores e está debruçado sobre um plano nada fácil para fazer a educação decolar. “Lula tem pressa”, diz na entrevista a seguir, dada em seu gabinete em Brasília.
O senhor recebeu um relatório do Tribunal de Contas da União sobre programas e obras tocados com verbas do Ministério da Educação. Ele aponta fraudes? O relatório levanta muitos questionamentos, sobretudo em relação à dinheirama do FNDE (o bilionário fundo do ensino básico), repassada via orçamento secreto sem nenhuma transparência. E, sim, há ali vários indícios de fraudes, o que uma auditoria da Advocacia-Geral da União está aprofundando a meu pedido. Para mim, ficou claro que altos recursos foram canalizados atendendo a interesses políticos.
Está disposto a abrir essa caixa-preta mesmo que nomes graúdos da República apareçam na auditoria? A partir do momento em que as informações forem comprovadas, as pessoas serão responsabilizadas e isso virá a público, não importa quem sejam os envolvidos.
O senhor promete retomar 100% das obras paradas na educação, cerca de 4 000 ao todo, operação que envolve um lamaçal burocrático e verbas. Já tem uma equipe cuidando disso? Há uma área à frente da missão no FNDE, mas a verdade é que ainda estamos formando o time do ministério. É como trocar o pneu com o carro andando. Para se ter uma ideia, consegui hoje, semanas depois da posse, nomear uma parte de meus secretários.
A Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação, aliás, se manifestou contra a escalação de seu secretariado, afirmando ser pró-mercado e afinado com instituições privadas. Faz sentido? Nenhum. São todos profissionais com longa estrada na academia, na educação pública e, assim como eu, defendem e trabalham pelo avanço da qualidade. Esse tipo de crítica é um equívoco.
Como conviver com fileiras mais militantes e radicais na educação, onde estão presentes quadros do próprio PT? Precisamos desarmar as pessoas nestes tempos de polarização e parar para conversar. Diferenças existem e são salutares. O inadmissível é a falta de diálogo e a intolerância com quem não pensa rigorosamente igual a você.
“Estamos discutindo a reformulação do Enem, que deve estar em sintonia com o novo modelo de escola que vem sendo implantado. As mudanças já podem valer em 2024”
A reforma do ensino médio já em curso lança as bases para transformar escolas públicas e particulares, ao oferecer trajetos acadêmicos distintos para alunos com diferentes gostos e ambições. Uma ala do PT é contra. E o senhor? Acho que a ideia contém aspectos positivos — amplia a carga horária, dá espaço ao ensino profissionalizante e torna o currículo mais flexível, o que pode ser um atrativo para tantos jovens que andam desinteressados da sala de aula. Mas há ponderações que precisamos observar: municípios mais pobres terão condições de fazer uma mudança tão profunda?
O senhor considera então rever o novo ensino médio? Sou a favor de avaliar os resultados desse modelo. Sei que está bem no princípio e precisamos de mais dados. O fato é que nem esse nem qualquer outro debate podem ser pautados pelo filtro ideológico, que acaba por ofuscar a visão. O melhor caminho é sempre consultar as pesquisas e ouvir o que diz a ciência.
E o Enem, que mexe com a vida de tanta gente, vai mudar, afinal? Vamos repensar a fórmula do Enem e adianto aqui que esse remodelamento já está sendo discutido. O exame precisa estar afinado com o novo ensino médio vigente, baseado em diferentes itinerários dentro da escola.
Falava-se em uma prova mais enxuta igual para todos e outra específica, que variaria conforme a área escolhida pelo aluno. Será algo nessa linha? Estamos iniciando os trabalhos com um grupo de estudos debruçado justamente sobre o teor da prova. O que dá para dizer hoje é que as mudanças já podem valer para quem fizer o Enem em 2024.
Uma de suas anunciadas metas é implantar em escala nacional um programa de alfabetização na idade certa, inspirado no bem-sucedido exemplo cearense. O governo Dilma Rousseff implantou algo bem parecido e não deu certo. Por que funcionaria agora? No governo Dilma, faltou estabelecer um pacto com estados e municípios, articulação e base legal. Também não se viu um ponto vital ao sucesso do programa: prover estímulos, inclusive financeiros, àqueles que alcançam as metas, que devem ser muito bem definidas. A esfera federal, e aqui fica uma promessa, vai liderar com vigor o programa. Não podemos aceitar que apenas um terço das crianças aprenda a ler e a escrever na idade esperada. Se a base é frágil, prejudica todo o percurso escolar.
Outro de seus objetivos é fazer com que todas as escolas funcionem em tempo integral, o que requer uma bolada de dinheiro. De onde ela sairá? Essa é uma boa pergunta. Ainda não sabemos. O que eu sei é que o tema precisa ser posto à mesa, já que a medida é imprescindível para uma mudança de patamar. O Congresso não resolveu tirar o Bolsa Família do teto de gastos? Temos de pensar em todas as alternativas.
Mal havia assumido o posto, e o MEC entrou em rota de colisão com os municípios depois que o senhor anunciou o aumento do piso dos professores. Faltou conversar com quem paga a conta? O que eu fiz foi obedecer a lei, que prevê aumento do piso dos docentes em janeiro. Sobre o valor do reajuste, paira de fato um vácuo legal desde 2020 e, por isso, me ancorei num parecer técnico da AGU recomendando que seguisse a regra anterior a essa data. É justamente sobre esse ponto que os municípios se queixam, dizendo não haver respaldo para os quase 15% concedidos. Olhando à frente, precisa vir do Congresso ou do próprio Poder Executivo uma proposta para regulamentar o aumento do piso.
Quando Bolsonaro elevou em 33% o piso dos docentes, a oposição disparou críticas, afirmando que a motivação era política. E agora, não é? A questão com o governo Bolsonaro é que, ao alardear o aumento, eles bateram o bumbo capitalizando um ato que é previsto por lei e cuja conta, como já dissemos, acaba no colo de estados e municípios. O problema não foi com a decisão, mas com o gesto.
Qual seu plano para fazer o modelo do Ceará ser reproduzido na dimensão e complexidade do território brasileiro? Vou pregar em prol dele em todos os estados, mostrando evidências científicas do que funcionou, dando estímulos e tentando dissolver o clima de polarização, que só atrapalha. Quero firmar pactos com os 27 governadores. Minha ideia é que os que fizerem bem a lição de casa, cumprindo metas, vão receber mais. Isso é eficaz. Quero ainda traçar um plano para além dos meus quatro anos nesta cadeira, como ocorre em tantos países. A falta de uma cultura de planejamento é um freio para o Brasil.
“Falta ao Brasil uma cultura de planejamento. Não se veem partidos nem governantes que passaram nas últimas décadas pelo poder embalados por uma visão de longo prazo”
Em que medida? Nas últimas décadas, o Brasil vem demonstrando essa lacuna claramente, sem parar para se indagar: onde queremos estar daqui a dez, quinze anos? E o que é preciso fazer agora para chegar lá mais tarde? Não se veem governos nem partidos — e me refiro a todos os que passaram recentemente pelo poder, inclusive o PT — elaborando planos embalados por uma visão de longo prazo.
O presidente Lula disse que quer todas as escolas conectadas à internet até 2026. Ninguém discorda de que a iniciativa é meritória, mas a experiência global mostra que é desperdício de dinheiro disponibilizar computadores e tablets sem uma ideia clara do que fazer com eles. O senhor tem? Ainda precisamos construir um projeto pedagógico, mas tenho clareza de que a conexão é essencial e abre a crianças e jovens a oportunidade de ter uma escola mais atraente e que não se encerre no turno escolar — o que, aliás, pode ser importante ferramenta para ajudar a sanar as lacunas deixadas pela pandemia.
A ministra Anielle Franco avalia que é necessário ampliar as cotas no país. O senhor concorda? Sou um defensor da política de cotas, mas não discutimos isso ainda.
E as escolas cívico-militares, uma das bandeiras da era Bolsonaro, o MEC vai manter? Estou esperando receber um relatório sobre o tema e vou avaliar. Por princípio, prefiro modelos em que a criatividade seja mais estimulada e que estejam em consonância com as diretrizes do MEC. Não é o caso das escolas cívico-militares, ligadas às Forças Armadas e funcionando em um sistema próprio, à parte.
A histórica aliança PT-PDT no Ceará foi rompida nas últimas eleições. Ciro Gomes, que concorreu à Presidência pelo PDT, diz que o senhor se afastou porque Lula lhe prometeu um ministério. Procede? Não, e prefiro não falar sobre Ciro. Só digo que a população deixou claro o que pensava sobre ele nas urnas.
A repugnante afronta à democracia na invasão das sedes do poder em Brasília, em 8 de janeiro, é um sinal de que falta boa educação a uma parcela da população brasileira? Acho que sim. Escolas e universidades são espaços para pavimentar as bases de um bom cidadão, que é alguém tolerante e aberto à diversidade de ideias, avesso aos extremismos e preparado para o pleno exercício da democracia.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826