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Ilan Goldfajn: “América Latina pode ser a solução para problemas globais”

Primeiro brasileiro a presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento diz que o país será cada vez mais relevante no novo tabuleiro econômico mundial

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 10h06 - Publicado em 8 set 2023, 06h00
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  • Nascido em Israel e radicado no Brasil, o economista Ilan Goldfajn tornou-se, em janeiro de 2023, o primeiro brasileiro a presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Sua missão não é nada simples. “Queremos fazer da América Latina uma protagonista do mundo”, afirma. Para isso, aposta nas vantagens competitivas da região, como a biodiversidade da Amazônia, o alto potencial para produzir energias limpas e a vocação para fornecer os alimentos capazes de saciar a fome do planeta. “Estamos diante de uma oportunidade única para redefinir o papel da América Latina”, disse em entrevista exclusiva a VEJA. Em sua trajetória profissional, ele enfileira empreitadas bem-sucedidas. À frente do Banco Central brasileiro de agosto de 2016 a fevereiro de 2019, derrotou uma inflação que ameaçava a economia e entregou a seu sucessor, Roberto Campos Neto, taxas de juros surpreendentemente baixas. A seguir, Goldfajn apresenta as suas armas para ajudar a América Latina e o Brasil a ganhar relevância na geopolítica mundial.

    No segundo trimestre, o PIB brasileiro cresceu acima das previsões do mercado. Que avaliação faz desse desempenho? Apesar do avanço pontual, minha atenção está voltada para a performance da América Latina a médio prazo. Claramente, estamos alinhados com os ciclos globais: o crescimento mundial pode estar desacelerando, mas continua robusto. Essa tendência é evidente em toda a América Latina, inclusive no Brasil. Vejo a América Latina, e em particular o Brasil, com uma perspectiva positiva, especialmente considerando suas complementaridades.

    Poderia dar um exemplo do potencial brasileiro? Um exemplo é a crescente demanda mundial por energia limpa. O Brasil possui uma das matrizes energéticas mais limpas e, com investimento e incentivos corretos, pode se tornar um grande exportador de energia renovável. Na Europa, já testemunhei tal interesse em diversos eventos e reuniões. Nesse contexto, o hidrogênio verde tem potencial para redefinir os mercados globais.

    Como avalia a atuação do Banco Central brasileiro no combate à inflação? A América Latina foi pioneira no combate à inflação e, provavelmente, será uma das primeiras áreas a superá-la. Em relação à inflação, o histórico do Brasil e da região nos fez responder mais rapidamente, e é possível que nossa recuperação também seja mais ágil. Esta não é apenas a minha perspectiva, mas é uma visão compartilhada por observadores internacionais: em termos de enfrentamento da inflação, estamos na vanguarda. Isso destaca a importância da autonomia dos bancos centrais e de políticas monetárias e fiscais responsáveis.

    A sua nomeação para o BID representa uma mudança na influência do Brasil no cenário econômico global? A presidência do BID é reflexo do papel crucial que desempenhamos na América Latina e no mundo. O Brasil tem vantagens comparativas inigualáveis, como a Amazônia e a capacidade para inovar na produção de alimentos, entre muitas outras. Estamos diante de uma oportunidade única para redefinir o papel da América Latina. A região pode ser parte da solução tanto para problemas globais quanto locais.

    “Em termos de enfrentamento da inflação, estamos na vanguarda. Isso destaca a importância da autonomia dos bancos centrais e de políticas monetárias responsáveis”

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    Que soluções a região poderá oferecer? A América Latina não deve ser vista apenas como uma fonte de desafios, mas também, ressalto mais uma vez, como um bastião de energia renovável, com potencial para desempenhar um papel vital nas questões climáticas. Atualmente, já contamos com 30% de nossa energia proveniente de fontes renováveis, enquanto a média global é de 14%. Somos, portanto, parte da solução em várias frentes, e o mundo está começando a reconhecer isso.

    Mas é inegável que a região também se caracteriza pela instabilidade política e econômica. Como mudar essa percepção? É vital fortalecer nossas instituições e estabelecer regras claras e estáveis. Enquanto mudanças políticas são inevitáveis e comuns, a estabilidade econômica deve ser preservada para garantir a confiança dos investidores. Regulações consistentes são essenciais, evitando alterações frequentes que tornem os investimentos imprevisíveis. No BID, promovemos políticas que buscam essa estabilidade, apoiando projetos que alavancam reformas essenciais. Embora cada governo possa ter as suas prioridades, a integridade dos contratos deve ser mantida. Isso não só atrai mais investimentos do setor privado, mas também impulsiona o crescimento.

    Como o acordo entre o Mercosul e a União Europeia beneficiará a América Latina e o Brasil? O acordo beneficiará ambas as regiões. Haverá, por exemplo, acesso preferencial de 95% das exportações direcionadas à União Europeia. Em certos setores, essa taxa chegará a 100%. Com isso, haverá uma redução nas tarifas. Atualmente, nossa região é relativamente fechada ao comércio exterior, e qualquer abertura certamente trará benefícios. Isso amplia a presença comercial do Brasil no cenário global.

    O senhor enxerga disposição das autoridades para levar o acordo adiante? É notório que tanto a União Europeia quanto o Brasil, cada um à sua maneira, têm um comprometimento robusto com a sustentabilidade e questões ambientais. Recentemente, estive na Europa com o presidente Lula e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e pude perceber o firme compromisso de ambos em concluir um acordo. Estamos otimistas quanto à relevância desse tratado para ambas as regiões.

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    Apesar desses esforços, observa-se no mundo um crescente protecionismo comercial. O que pode ser feito para reverter essa tendência? A integração é a chave. Precisamos começar pela integração regional, englobando o Caribe e as Américas. Há uma necessidade iminente de nos unirmos para reduzir custos de transporte e comércio e harmonizar acordos e regulamentações. Há uma vasta tarefa à frente.

    Qual seria o papel do BID nesse contexto? Vejo o BID como um protagonista vital na integração da região, pois temos a vantagem de possuir um mandato regional, o que nos permite enxergar a América Latina de forma holística. Devemos considerar como podemos nos integrar no comércio, harmonizando regras e focando na infraestrutura regional, seja em rodovias, ferrovias, rotas marítimas, portos, conectividade ou digitalização.

    Mas como podemos efetivamente capturar oportunidades? Em primeiro lugar, é preciso criar um ambiente de negócios propício para transformar oportunidades em realidade tangível. Também é imprescindível investir em programas educacionais, na formação profissional e no desenvolvimento de capital humano.

    Por que há pouca interação comercial entre os países latinos? Certamente, somos uma das regiões que menos comercializam entre si. Atualmente, se você deseja usar internet de banda larga de um país para outro na América Latina, muitas vezes a conexão precisa passar pelos Estados Unidos. Se quiser viajar de avião de um país latino-americano a outro, frequentemente o turista tem de viajar antes para cidades como Miami. A maior parte de nossas importações e exportações se dá com Estados Unidos, Europa e Ásia, e pouco dentro da nossa própria região. Quando destaco a necessidade de harmonizar padrões, adaptar regulações e unificar acordos, estou me referindo exatamente a essa falta de integração.

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    Como o Brasil poderá se beneficiar desse novo mundo que emergiu? Eu percebo uma clara janela de oportunidades. Em primeiro lugar, devido à capacidade do Brasil para apresentar soluções em áreas críticas, como mudanças climáticas, segurança alimentar e preservação da biodiversidade, especialmente na Amazônia. Além disso, embora a América Latina tenha suas complexidades geopolíticas, ela apresenta estabilidade em comparação com outros cenários globais, tornando-se assim um potencial polo de interesse. Também seria importante capitalizar as áreas nas quais existem vantagens naturais. Por exemplo, se produzimos lítio, o ideal seria agregar valor a esse produto, maximizando seu potencial coletivo — e reinvestindo os recursos em outros setores.

    “Há uma janela de oportunidades para o Brasil, devido à sua capacidade para apresentar soluções para as mudanças climáticas e a preservação da biodiversidade”

    A guerra comercial entre China e Estados Unidos deve ser motivo de preocupação? Um dos pontos fortes da América Latina é a sua posição geopolítica neutra que, em essência, valoriza a democracia. Enquanto há exceções, a maior parte da região promove a liberdade de expressão e respeita os direitos humanos. Diante desse cenário, a América Latina deve reconhecer e capitalizar seus pontos fortes, mantendo-se alheia a tensões geopolíticas e focando em resolver seus desafios internos.

    A indústria brasileira tem perdido relevância no PIB. O que é preciso fazer para fortalecer o setor? O que falta é um impulso na produtividade. Precisamos fomentar a inovação, investir mais em educação e buscar eficiência em processos. Ao aumentar a produtividade, estimulamos o crescimento econômico e, consequentemente, teremos mais recursos para investir em áreas sociais. A mineração moderna, por exemplo, além de estar profundamente enraizada em avanços tecnológicos, representa uma fronteira emergente de inovação. É crucial que abordemos cada setor, seja ele tradicional ou emergente, com uma mentalidade voltada para a eficiência.

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    O senhor fala muito em sustentabilidade. De que forma o banco contribui para o processo de transição energética? Somos líderes globais no desenvolvimento de instrumentos financeiros inovadores, como a troca de dívidas por investimentos em conservação. Recentemente, fizemos acordos com o Equador e com Barbados, que resultaram em economias significativas e reinvestimentos na preservação ambiental. Diversos outros países demonstraram interesse em engajar-se em iniciativas similares. A situação geopolítica, exemplificada pela recente invasão russa na Ucrânia, reforça a urgência dessa transição.

    Como o BID mensura o sucesso e o impacto dos projetos que financia? O sucesso dos projetos financiados pelo BID é baseado no impacto gerado na vida das pessoas, e não meramente na quantidade de fundos desembolsados. Nosso foco está em entender como os recursos têm transformado realidades. Quando abordamos questões de pobreza, o objetivo é mensurar quantos indivíduos foram beneficiados e conseguiram superar essa condição. No que tange à diversidade, igualdade de gênero e racial, avaliamos se os projetos efetivamente incentivaram e resultaram em contratações mais equitativas. Portanto, nossa ênfase está fortemente ligada aos resultados finais e ao impacto real dos projetos na vida em sociedade.

    Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858

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