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‘Estamos diante de um Estado teatral’, diz Herman Benjamin, presidente do STJ

Ministro diz que devastadores do meio ambiente são tratados com leniência e ressalta que o Judiciário precisa permanecer atento ao combate à corrupção

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 6 set 2024, 11h37 - Publicado em 6 set 2024, 06h00
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  • Herman Benjamin assumiu a presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente e, desde então, está em modo de alerta. O ministro é referência em questões relativas ao meio ambiente. Na semana passada, a exuberante vista das amplas janelas de seu gabinete em Brasília estava ofuscada pela fumaça das queimadas que têm devastado áreas imensas do Pantanal, do Cerrado e uma parte do interior de São Paulo. “Falta punição”, afirma. Aos 66 anos, Benjamin é conhecido entre os pares como um juiz rígido e detalhista. Essas duas características ficaram evidentes quando ele atuou, em 2017, como relator do rumoroso processo que pedia a cassação da chapa que levou à reeleição de Dilma Rousseff. Na época do julgamento, a presidente já havia sofrido impeachment e o debate se dava em torno do mandato do vice-presidente Michel Temer. O ministro defendeu a punição de ambos, argumentando que toda a chapa, e não apenas Dilma, havia sido eleita com dinheiro oriundo de propina. Apesar das evidências, a tese foi derrotada — página virada, segundo ele, apesar de a corrupção continuar figurando como uma das maiores chagas do país. No biênio que passará no comando de uma Corte que analisa uma miríade de processos, que vão desde briga de condôminos a prisão de governadores, o magistrado quer fazer das causas do racismo, da dignidade dos presos e da proteção aos idosos as principais plataformas de sua administração. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a VEJA.

    Por que a destruição dos nossos biomas continua acontecendo ano após ano, governo após governo? A degradação ambiental no Brasil é um processo histórico. Por que o desmatamento continua desenfreado e não avançamos o necessário? A resposta é simples. Com anistias recorrentes que o poder público concede a quem devasta, especialmente em relação às multas, a expectativa que se tem é que destruir vale a pena porque mais para frente virá uma borracha para apagar. Além disso, com raras exceções, ninguém no país chama de criminoso e trata como criminoso quem desmata ilegalmente 50 000 hectares de floresta. O fato é que estamos diante de um Estado teatral. Existem as leis, mas elas não produzem efetividade.

    O problema então está no sistema judiciário? O discurso ambiental atrai multidões e pode ser feito sem apresentar resultados concretos, o que desmoraliza a legislação. Esse é o Estado teatral. É o mesmo Estado teatral que não é teatral para a criminalidade praticada pelos pobres, negros ou excluídos. Respondendo à pergunta, o Poder Judiciário pode ser um instrumento de efetividade da lei ou um instrumento de leniência para o descumprimento da lei. Hoje somos muito lentos nas questões ambientais. A condenação de um grande desmatador dez anos depois não vai ter o efeito que poderia ter se ocorresse em um período de tempo razoável. Temos que dar aos casos ambientais a prioridade que damos a outras categorias, como a violência doméstica.

    “Com raras exceções, ninguém no país chama de criminoso e trata como criminoso quem desmata ilegalmente a floresta. Existem as leis, mas elas não produzem efetividade”

    O que é necessário para romper essa barreira do simples discurso? Uma demonstração política de comprometimento seria retirar o crédito e os benefícios fiscais de quem desmata ilegalmente ou de quem queima. Se o exemplo vier dos grandes, os médios e pequenos vão gradativamente passar a cumprir a lei. Imagine a seguinte situação: se um produtor rural queimou ou devastou ilegalmente, todos os empréstimos a juros subsidiados que ele tiver no Banco do Brasil passariam a ser antecipados sem a possibilidade de financiamento das próximas safras. Resolvido. A verdade é que, se não mudarmos a lei, o meio ambiente vai continuar sendo destruído. É como a corrupção.

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    Como assim? É impossível imaginar um Estado de direito em que a integridade no cuidar do patrimônio público não seja um dos pilares. É uma ficção imaginarmos que vamos acabar com a corrupção, mas queremos, como Estado de direito, criar barreiras para, de um lado, proteger o patrimônio público e, de outro, criar incentivos, inclusive pelo exemplo, de que o patrimônio público é de todos. Corrupção que é identificada e não é punida é estímulo a mais corrupção. Temos visto, no entanto, ações de enfraquecimento de mecanismos de punição a corruptos e corruptores no Brasil. A mudança na Lei da Improbidade, por exemplo, permite que se roube à vista e se pague em modestas prestações a perder de vista. É a receita para a vulnerabilidade do Estado e do patrimônio público. Em vez de a lei significar um obstáculo ou um desestímulo ao mau comportamento, é o oposto. Funciona como uma espécie de propaganda, de incentivo: “Faça porque nada de muito grave vai acontecer”. É a trilha certeira para o surgimento de novos escândalos.

    O senhor vislumbra potenciais escândalos de que natureza? No plano federal, especialmente — e aqui falo com a experiência daquele processo do Tribunal Superior Eleitoral (cassação da chapa Dilma Rousseff/Michel Temer) que todos acompanharam. Temos um sistema presidencialista de coalizão em que o chefe do poder, por mais bem-intencionado que seja, não tem o controle total da máquina administrativa. Os cargos da administração superior são divididos entre partidos que nem sempre têm uma visão muito correta sobre a melhor forma de proteger o patrimônio público.

    Assim como em relação ao meio ambiente, não há uma certa tolerância também com a corrupção? Muita gente pensa o Estado como se fosse uma entidade metafísica, um habitante de Marte, quando é esse mesmo Estado que vai fornecer educação, saúde, transporte e todos os benefícios sociais. Parece que o Estado é a casa da mãe Joana, que se pode fazer com ele o que se quer, inclusive dilapidá-lo. Quem eventualmente se atreva a defender o Estado é chamado de fiscalista. É como se o Estado fosse o inimigo. O combate à corrupção faz parte de um pacote do bem que reúne questões existenciais. Ele tem que ser permanente — e o Judiciário estar atento.

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    A democracia brasileira esteve sob ameaça? Estes últimos anos mostraram que nossas instituições, apesar dos extremismos, são fortes e conseguem sobreviver. O Judiciário brasileiro é uma instituição tão sólida que, embora não possa sozinha fazer milagres, em momentos críticos, como ocorreu recentemente, tem condições de assegurar as bases do Estado de direito, de impedir excessos autocráticos, ambições de aspirantes a ditador, degradadores da natureza que se imaginam permanentemente impunes e também todos aqueles que eventualmente pensem que podem fazer com o patrimônio público o que bem entenderem.

    Fala-se muito na possibilidade de uma anistia para os envolvidos nos episódios do 8 de Janeiro. Um país como o Brasil não pode ter uma legislação e uma aplicação da legislação que esteja ao sabor dos ventos. Isso é a receita para as pessoas não cumprirem a lei. Não pode acontecer. Não se pode transigir com a possibilidade de as nossas decisões serem apagadas da noite para o dia. Ficam desmoralizados a lei e os juízes, porque, se isso ocorrer, acabamos virando juízes do nada.

    A que o senhor atribui o desgaste da imagem do Judiciário perante uma parcela da população? Quem quer liberdade absoluta para fazer o que quer não pode ser juiz. Quem gosta de estar todo dia no rádio e na televisão não pode ser juiz. Sempre digo isso em eventos: “É vedado ao magistrado manifestar por qualquer meio de comunicação opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais”. Exigências assim não são apenas para os juízes. Quem quer ser padre e adora uma fofoca não vai poder revelar o que ouviu no confessionário. O médico não pode revelar informações privadas dos seus pacientes. É importante o juiz entender que, com esse imenso poder, nós temos responsabilidades que outras profissões não têm e devemos aceitar essas responsabilidades como parte do contrato que fizemos com o Estado e com a sociedade.

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    “O Judiciário tem condições de impedir ambições de aspirantes a ditador e de todos que pensam que podem fazer com o patrimônio público o que bem entenderem”

    Isso é uma crítica a alguém ou a algum tribunal em particular? A magistratura brasileira é uma das mais preparadas, capazes e independentes do mundo. Não podemos sofrer do complexo de vira-lata, mas temos que fazer um certo dever de casa no sentido de assegurar que a população nos veja não como protagonistas dos debates político-partidários, com opinião sobre tudo, porque isso acaba por enfraquecer o sentimento de imparcialidade, imprescindível à legitimidade de que precisamos. Ser juiz significa, por exemplo, reconhecer que nunca será rico. Quem quer ser rico não deve fazer concurso para juiz. Quem quer liberdade absoluta para fazer o que quer também não pode ser juiz.

    O Judiciário brasileiro precisa de um código de ética? Já tem. A Lei Orgânica da Magistratura se aplica a todos os juízes brasileiros. Um de seus artigos determina, por exemplo, ser dever do magistrado “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”. É lei, ressalto, que se aplica a todos os juízes. É importante o juiz entender que, com esse imenso poder, nós temos responsabilidades que outras profissões não têm. Se um juiz descumpre esses limites, o reflexo é na instituição como um todo.

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    Que marca gostaria de deixar ao final de sua gestão como presidente do STJ? Quero trabalhar e dar atenção maior a alguns temas: proteção dos idosos, que sofrem todo tipo de abusos, é um deles. Outro é a questão carcerária: defendo uma lei penal que proteja a sociedade da criminalidade desenfreada, mas o Poder Judiciário tem a responsabilidade de assegurar que os direitos humanos dos encarcerados sejam minimamente respeitados. Não é possível justificar no Estado de direito o encarceramento de pessoas como se fossem animais. E não importa se os crimes que praticaram são considerados animalescos, porque, no instante em que essas pessoas entram em uma prisão, elas fazem jus a serem tratadas como seres humanos iguaizinhos a todos nós. Quero também fazer cooperação com os Judiciários da Ásia e da África, e, por fim, precisamos falar sobre racismo. Essa é uma questão existencial. A gente imagina que o racismo é algo individual e na verdade não é. Também é preciso dar aos nossos tribunais a cara do povo brasileiro. A sociedade tem que se ver em cada um deles.

    Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909

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