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Vitória do excêntrico Milei em prévias argentinas preocupa países vizinhos

Triunfo de um candidato com um plano de governo ultrarradical nas primárias escancara a insatisfação dos eleitores com os políticos tradicionais

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h16 - Publicado em 17 ago 2023, 19h30
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  • De jaqueta de couro e exibindo as costeletas e a juba revolta de sempre, Javier Milei, que se proclama “anarcocapitalista”, seja lá o que isso significa, comemorou a vitória nas Paso, as primárias com voto direto e obrigatório para escolher os candidatos à Presidência da Argentina, bem à sua maneira. “Eu sou o leão, rei de um mundo perdido”, bradou mais alto do que o rock pauleira que servia como música de fundo no palco em Buenos Aires, sob os aplausos de 10 000 apoiadores. Novato que renega tudo o que compõe a política argentina hoje, propositor de medidas para implodir o status quo, Milei, de 52 anos, superou as pesquisas e abocanhou mais de 30% dos votos, vencendo em dezesseis das 24 províncias. “Vamos pôr fim à casta política inútil, parasita e criminosa que está afundando este país”, proclamou, provocando arrepios nas duas coalizões tradicionais — a Juntos Pela Mudança, de centro-direita, e a peronista União Pela Pátria.

    No discurso de vitória, Milei, além de agradecer à irmã Karina, seu braço direito, e aos cinco cães da raça mastim que trata como família, cultivou a esperança de chegar à Casa Rosada logo no primeiro turno, no dia de seu aniversário, em 22 de outubro, alcançando 45% dos votos ou 40% com 10 pontos de diferença sobre o segundo colocado. Será difícil. O Juntos Pela Mudança, tendo à frente a linha-dura Patricia Bullrich (da família que dá nome ao Pátio Bullrich, shopping center que é parada obrigatória dos turistas brasileiros), saiu das primárias com 28% dos votos e o União Pela Pátria, do atual ministro da Economia Sergio Massa, com 27%. Esse semi-em­pate, no entanto, não leva em conta que Bullrich e Massa competiram com outros nomes, enquanto Milei carregou sozinho todas as preferências pelo seu partido nanico, A Liberdade Avança, criado em 2021 — e tem agora dois meses para cooptar descontentes das duas coligações.

    RIVAL - Patricia Bullrich: a candidata de centro-direita ficou em segundo lugar
    RIVAL - Patricia Bullrich: a candidata de centro-direita ficou em segundo lugar (Juan Mabromata/AFP)

    O resultado inesperado das primárias, desde sempre uma projeção da eleição geral, é produto da frustração dos argentinos com a crônica disfunção econômica de seu país, que no momento alcança níveis estratosféricos. A inflação anual está em 116% e subindo, só superada pela da Venezuela, Zimbábue e Líbano. A taxa de juros do Banco Central bateu nos 118% ao ano, 1 dólar custa 620 pesos no mercado paralelo, o dobro de um ano atrás (a ilusória taxa oficial de 350 pesos também subiu 40% só em 2023), e mais de 40% da população vive na pobreza, segundo a agência nacional de estatísticas, Indec. As reservas nacionais se esvaem nos cofres do país que é hoje o maior devedor do Fundo Monetário Internacional, o FMI. Os altos impostos levam muitas empresas a operar na informalidade, estampando na fachada a palavra barrani — termo usado na Argentina, geralmente com certo orgulho, para designar a economia informal. Cansados de tudo isso, muitos argentinos, sobretudo jovens, se entusiasmam com as radicais propostas econômicas contidas no “plano motosserra” de Milei — um conjunto de marretadas que até pouco tempo atrás ninguém levava a sério.

    Ex-goleiro e ex-integrante de uma banda cover dos Rolling Stones, Milei se formou em economia, deu aulas em faculdades, prestou consultoria e escreveu livros, enquanto deslanchava uma carreira no rádio, na TV e no teatro valendo-se de gestos histriônicos e frases de efeito, até se eleger deputado em 2021. Ao longo da trajetória, foi consolidando seu projeto libertário — um conceito nascido na esquerda e, mais recentemente, absorvido pela direita, que consiste em abolir todos os limites da vida em sociedade. Ele quer dolarizar inteiramente a economia, suspendendo qualquer controle sobre a moeda americana, e simplesmente acabar com o Banco Central — uma maquete do prédio de Buenos Aires já foi literalmente explodida em seus comícios. Num sopro de racionalidade, promete cortar drasticamente os gastos públicos e uma das formas seria reduzir o número de ministérios de dezoito para oito, passando a motoniveladora inclusive nas pastas de Educação e Saúde — os dois sistemas, privatizados, alcançariam, segundo ele, qualidade de primeiro mundo.

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    DECLÍNIO - O peronista Sergio Massa: prejudicado pela economia e pelas brigas internas de um movimento em declínio
    DECLÍNIO - O peronista Sergio Massa: prejudicado pela economia e pelas brigas internas de um movimento em declínio (Erica Canepa/Bloomberg/Getty Images)

    A defesa do mercado ultralivre se estende ao comércio de órgãos humanos, visto que, na sua visão, cada um sabe o que é melhor para si. Aí começa o lado exótico do candidato. Admirador de Donald Trump e de Jair Bolsonaro (que se disse satisfeito com o resultado das primárias), Milei é adepto da teoria conspiracionista de que a esquerda manobra para obter a dominação cultural do mundo, acha que as salas de aula são criadouros de esquerdistas e qualifica o aquecimento global de “mentira marxista”. Na vida pessoal, diz que não penteia o cabelo desde os 13 anos, pratica (e ensina, não se sabe bem a quem) sexo tântrico e diz conversar, por meio de uma médium, com Conan, o mastim que clonou e deu origem a seus quatro “netinhos”. Também entrega seu salário de deputado todo mês ao vencedor de um sorteio realizado ao vivo. No plano social, ele se engaja decididamente no manual da extrema direita: quer reverter a lei que permite acesso ao aborto, revogar conquistas da comunidade LGBTQIA+ e liberar o porte de armas. “Ele construiu uma imagem excêntrica que o diferencia do establishment que quer substituir”, diz Lara Goyburu, professora de política da Universidade de Buenos Aires.

    Na eleição de 22 de outubro, com provável segundo turno em 19 de novembro, seus adversários são Bullrich, herdeira de Mauricio Macri, o presidente que deixou o cargo execrado em 2019, e o peronista Massa, que carrega o peso do fracasso do atual governo e do declínio do movimento peronista em geral, durante um século a força motora da política argentina. “O peronismo não conseguiu acompanhar as profundas mudanças na sociedade”, avalia o sociólogo Waldo Ansaldi, autor do livro América Latina. La construcción del orden. No contexto pós-primárias, Massa larga em desvantagem — sua coalizão está dividida e ele mesmo é visto com desconfiança pela corrente predominante, comandada por Cristina Kirchner. “Massa usa a ideia de que é ruim com ele e pior sem ele”, diz Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil em Buenos Aires, mas não parece que esteja convencendo muita gente. Os analistas preveem que Bullrich, que rejeita qualquer aliança com o peronismo, defende rápida redução dos gastos públicos e ganhou fama pelas posições duras em questões de segurança, terá mais condições de conquistar eleitores indecisos e eventualmente se firmar como a opção anti-Milei. “A centro-direita e centro-esquerda podem se unir contra a radicalização”, diz o professor de geopolítica da ESPM, Leonardo Trevisan.

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    CHEGA DE INFLAÇÃO - Protesto: argentinos amargam preços altos e pobreza
    CHEGA DE INFLAÇÃO - Protesto: argentinos amargam preços altos e pobreza (Luis Robayo/AFP)

    Mais do que promover a ascensão de um novato extravagante, as primárias argentinas representam o extravasamento da raiva e do descontentamento expresso no jingle de protestos antigos, que se vayan todos (fora todo mundo). “Dessa vez, quem personificou o cansaço foi Milei”, explica Hernán Toppi, professor de ciência política da Universidade Nacional de San Martín. Caso o ambiente persista e ele vença, vai ser dificílimo governar. Atualmente, A Liberdade Avança tem apenas duas das 257 cadeiras no Congresso, e as projeções indicam que não passarão de trinta em outubro. “Seu discurso agressivo, além disso, deixa quase nenhuma margem para negociatas”, analisa Analía Orr, da rede de politólogas No Sin Mujeres. As relações com os vizinhos, a maioria de esquerda, serão complicadas — antes mesmo de ser eleito, no ano passado, o presidente Lula pediu a representantes da Casa Rosada informações sobre o candidato, e mais recentemente disse que a democracia argentina corre risco. A turbulência prevista para os próximos cinquenta dias será sentida em toda parte. É de deixar muita gente de cabelo em pé.

    Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855

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