Um futuro apimentado
Eleito num país atolado em corrupção e violência, López Obrador, presidente de esquerda, ainda terá de enfrentar o furacão do outro lado da fronteira —Trump
Enquanto partidos de direita se disseminam por toda parte, no México o sinal é invertido: em uma guinada ideológica histórica no país, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, conhecido pelas iniciais AMLO, levou a Presidência com larga vantagem em relação aos tradicionais Partido Revolucionário Institucional (PRI) e Partido Ação Nacional (PAN), que se revezavam no poder havia quase duas décadas. Ao tomar posse no sábado 1º, Obrador disse que a hoje conflituosa relação com os Estados Unidos será “respeitosa”, reforçou o discurso de combate ao fosso social e tratou de acalmar o mercado, cujo nervosismo se expressou em uma queda da bolsa de 14% desde sua vitória. O que vem pela frente ainda é nebuloso: ao mesmo tempo em que promete baixar o preço dos combustíveis e ampliar programas sociais, Obrador garante que conduzirá o caixa federal com rédeas curtas. Falta dizer como.
O ambiente em que a ascensão de Obrador se tornou possível é de um México atolado em uma dívida pública que só avança e enredado em corrupção e violência, que bateu recorde em 2018. Os cartéis de drogas espalham o terror pelo país na base de sequestros e homicídios. “O mais recente período do PRI no comando foi tão desastroso que a oposição liderada por Obrador conseguiu vencer com a maior votação já registrada por um candidato à Presidência”, diz José Luis Gázquez, doutor em relações internacionais da Universidade Nacional Autônoma do México. Obrador obteve 53% dos votos nesta que é considerada a quinta eleição democrática mexicana (antes, o PRI reinou absoluto por sete décadas em pleitos de fachada).
Especialistas traçam paralelos entre as trajetórias de Obrador e Lula, a maioria descartável. Em dois pontos, no entanto, eles se aproximam: ambos tentaram se eleger presidente várias vezes (Obrador, duas; Lula, três) e foram amaciando o discurso para se tornar palatáveis a um leque amplo da sociedade. Ex-prefeito da Cidade do México e saído das costelas do PRI, Obrador, de 65 anos, fundou em 2011 o Morena, à época visto como um partido inofensivo. Nestas eleições, porém, o Morena se agigantou, conquistando maioria na Câmara e no Senado e governos estaduais. “Esse cenário traz um risco de centralização do poder, o que não seria bom para o México”, alerta o cientista político Francisco Valdés.
Eleito, Obrador disse que dispensaria metade do salário, e após a posse anunciou a venda de aviões e helicópteros oficiais e reabriu o inquérito sobre o macabro sumiço de 43 jovens em 2014. No plano externo, um de seus grandes desafios será equacionar a conturbada relação com Donald Trump, um gargalo herdado do antecessor Enrique Peña Nieto. Para se ter uma ideia do enrosco, Peña Nieto jamais foi a Washington, fato sem precedentes entre os dois países na história moderna. Trump assumiu prometendo erguer um muro na fronteira com o México (pago pelos mexicanos!) para frear o fluxo de imigrantes — ideia que, aliás, ele até hoje martela insistentemente.
Trump dizia ainda que endureceria o Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta), que reúne Estados Unidos, México e Canadá. E cumpriu. O Nafta renovado, agora conhecido pela sigla USMCA, foi assinado pelos três países no encontro do G20 em Buenos Aires e favorece de fato os Estados Unidos. Falta o Congresso americano ratificá-lo, o que é dor de cabeça para Obrador — para o combalido México, é melhor qualquer acordo do que nenhum. Também na caravana de imigrantes vinda de países da América Central, estacionada em Tijuana à espera de ingressar nos Estados Unidos, reside um potencial barril de pólvora. “Enquanto Trump vê o assunto como problema de defesa nacional, Obrador o encara como crise humanitária”, diz o cientista político americano Stephen Morris. É esperar para ver os próximos capítulos dessa autêntica novela mexicana.
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612