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Seis em cada sete pessoas têm padrão de vida ‘decente’, diz estudo

A pobreza e as disparidades persistem, mas nem tudo é sombrio no planeta, revela livro do estatístico sueco Hans Rosling

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h40 - Publicado em 28 fev 2020, 06h00
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  • Bombardeadas de informações a torto e a direito, as pessoas hoje em dia têm a impressão de que sabem tudo sobre o mundo — e de que ele vai de mal a pior. O balanço de 2019 é um amontoado de protestos disseminados na América Latina, conflitos no Oriente Médio, avanço do obscurantismo no planeta e relatos de desigualdade extrema, inclusive nos países ricos. Calma, porém: o apocalipse não está na esquina, como prova, com números, o livro Factfulness — O Hábito Libertador de Só Ter Opiniões Baseadas em Fatos (Editora Record). Escrito pelo estatístico sueco Hans Rosling, que morreu em 2017 vítima de um câncer no pâncreas, o título está na lista dos mais vendidos da Europa e dos Estados Unidos. O fundador da Microsoft, Bill Gates, comprou 3,6 milhões de cópias digitais para distribuir nas faculdades. Para o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, trata-se de “uma esperançosa projeção do potencial humano de progredir”. Rosling, de fato, vai na contramão das más notícias. Sob o prisma do que as pessoas conseguem comprar com o que ganham, e não o da renda absoluta — essa é a novidade —, suas planilhas mostram que seis em cada sete habitantes do planeta já desfrutam o que ele qualifica de “padrão de vida decente”, com boa dose de conforto cotidiano. Isso inclui filhos na escola, fornecimento de eletricidade estável e gastos em lazer, como viagens de férias. Assim, a sociedade como um todo está mais avançada do que se pensa. Oitenta por cento da população mundial utiliza contraceptivos e está protegida por vacinas e 88% dispõem de água potável.

    Os estudos de Rosling tiveram tal impacto que levaram o Banco Mundial a alterar a forma como classifica os países. Indo além da conhecida divisão entre desenvolvidos e em desenvolvimento, o órgão criou quatro subdivisões de renda diária que redefinem níveis de classe social e reveem o conceito de desigualdade. Há meio século, a maioria das pessoas estava paralisada no piso da pirâmide social e muito afastada do que o termômetro de Rosling aponta como classe média — daí a imagem do camelo e suas duas corcovas separadas por um profundo vale com que ele representa aqueles anos 1970. Só que a roda girou, e a escalada em massa rumo à faixa mediana engoliu uma corcova, em um retrato de mais bem-estar (veja o gráfico). Sim, a pobreza e os contrastes sociais persistem, mas Rosling traz um ângulo que proporciona algum respiro: de cinquenta anos para cá, a miséria global encolheu de 50% para 9%, alçando muita gente a patamares em que as necessidades básicas estão bem equacionadas.

    Em sua argumentação, o estatístico sueco mostra que, entre os 7 bilhões de moradores da Terra, embora 1 bilhão ainda viva na faixa das altas precariedades, outros 3 bilhões têm no mínimo acesso a fogão, geladeira, eletricidade e os filhos na escola. Sobra mais uma multidão de 3 bilhões de indivíduos que conseguem investir em lazer e em pequenos luxos, como carro próprio — entre esses, 1 bilhão ainda vão à universidade, frequentam restaurantes e viajam de avião. A nova ordenação dissolve as fronteiras geográficas para reagrupar a humanidade de acordo com o que ela acessa. Rosling se deteve sobre o cotidiano de 300 casas em cinquenta países. Foram destrinchados 130 aspectos, como itens de higiene e pratos de comida. E a conclusão é que muito mais gente do que se imagina galgou posições sociais em todos os cantos, visão que se choca com a da turma liderada pelo francês Thomas Piketty, autor do livro-referência Capital e Ideologia. Para ela, baseada no clássico coeficiente de Gini, a desigualdade se agrava (o Brasil, onde 1% da população concentra atualmente 30% da renda, é um exemplo). Rosling sabe disso, mas pondera: “A visão tradicional ignora a ascensão social de 4 bilhões de pessoas, ou 60% da humanidade, nas últimas décadas”.

    Um dos motores da melhora está no avanço dos países asiáticos da segunda metade do século XX para cá, sobretudo a Índia e a China. Em 1858, a Guerra do Ópio chinesa e uma tentativa frustrada de independência indiana deixaram um rastro de miséria, o que só começaria a ser revertido nos anos 50 para se acelerar nos 70 com reformas econômicas. As estatísticas ainda apontam para um fosso regional nos dois países, mas já há localidades ali em que o padrão de vida é tão bom quanto na Inglaterra ou nos Estados Unidos — um morador de Xangai acessa um sistema de saúde superior ao americano. Se as desigualdades, que represam o mercado interno e criam instabilidade social, forem atenuadas, em três décadas chineses e indianos terão rendimento médio semelhante ao dos britânicos.

    Mesmo a diferença de renda no Brasil é relativizada por Rosling. Um dos gráficos mostra que os 10% mais ricos ficavam com metade da renda em 1989, mas esse porcentual caiu para 40% em 2015, o nível mais baixo em décadas. “A maioria dos brasileiros saiu da extrema pobreza e está bem instalada na classe média, ponto em que dá para economizar para pagar o ensino médio.” Em resumo: “Em um dos países mais desiguais do mundo, grande parte das pessoas já está no meio”, sustenta. É verdade que a crise dos últimos anos fez o fosso brasileiro se agravar, mas o otimismo de Rosling não esmorece. A tirar pela lógica que regeu a humanidade até este momento, mesmo com solavancos ela sempre avança.

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    Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676

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