A cidade de São Francisco é afeita a abrigar movimentos pioneiros que depois se espalham pelo mundo. Foi assim com a revolução sexual dos anos 1960, a luta pelos direitos LGBTQIA+ e a liberação do uso medicinal e recreativo da maconha. Incansável, ela volta a liderar uma outra ruidosa chacoalhada — e convém estar atento. O campo agora é o da tecnologia. No mês passado, a californiana Sanfran, a “Paris do Oeste”, concedeu licença para que táxis autônomos, sem ninguém no volante, operem comercialmente em meio aos charmosos bondes e ladeiras improváveis. Contudo, como é tradição por ali, a medida alimentou muita gritaria e protestos.
São Francisco foi escolhida para ser a vitrine dos táxis robôs por se tratar da maior aglomeração urbana em torno do Vale do Silício, sede de diversas big techs. A população, com cerca de 800 000 habitantes, nem tão enxuta como a de um condado, nem tão grande e caótica como a de uma metrópole ao estilo de Nova York, pareceu ideal para o teste de realidade. Desde 2021, a Waymo, subsidiária da Alphabet (empresa-mãe do Google), e a Cruise, da General Motors, mantêm operações restritas na cidade. Agora, ambas obtiveram autorização para circular por todo o território, incluindo vias expressas, onde podem atingir a velocidade de até 105 quilômetros por hora, inclusive nos dias em que as condições climáticas forem ruins. “Embora ainda não tenhamos dados para avaliar os veículos autônomos em relação aos padrões estabelecidos pelos motoristas humanos, acredito no potencial da tecnologia para aumentar a segurança nas vias”, diz John Reynolds, presidente da Comissão de Utilidades Públicas da Califórnia.
Segurança? A incerteza, em decorrência da falta de conclusões, acendeu o rastilho de pólvora. Um grupo intitulado Safe Street Rebel, de moradores contrários à inovação, pôs-se em bicicletas e os rostos cobertos com máscaras para reclamar. Quando o veículo autônomo para no sinal vermelho, os ativistas colocam um cone de trânsito sobre o capô de modo a bloquear a visão das câmeras instaladas no teto. É o que basta para fazer o sistema puxar o freio de mão, não importando onde esteja. A ação tem obtido algum apoio entre os cidadãos que presenciaram cerca de 600 incidentes desde o início da experiência. Houve paralisações repentinas em avenidas de trânsito intenso, conversões proibidas e até o atropelamento de um cãozinho, que morreu na hora. “A ausência de responsabilização imediata nesses casos está testando a paciência de moradores”, diz Jack Stilgoe, professor da University College London e autor de Who’s Driving Innovation? (Quem está dirigindo a inovação?, em tradução livre). “As empresas, por ora, não são obrigadas a reportar o seu desempenho ou a admitir as fraquezas.”
O vácuo jurídico dá a dimensão do buraco. A concessão da licença ocorreu a poucos dias de dois julgamentos que têm tudo para pôr a eficácia da tecnologia no banco dos réus. A Tesla, do bilionário Elon Musk, está sendo processada pela família de dois motoristas que sofreram acidentes fatais a bordo de carros equipados com piloto automático que perderam o controle. A empresa alega que o dispositivo exige atenção total do motorista, que precisa assumir o controle se algum imprevisto (ou bug no sistema) ocorrer. No caso dos táxis, há uma central onde funcionários monitoram os veículos, mas eles não são capazes de interferir em situações extremas e repentinas.
Apesar dos obstáculos, e do atual frenesi de São Francisco, é improvável que ocorra uma marcha a ré definitiva, a ponto de interromper o avanço da inovação. Tanto a Waymo quanto a Cruise estudam expandir os negócios por outras sete cidades americanas, incluindo a gigante Los Angeles. Em Pequim, na China, há mais de 100 protótipos das companhias Baidu e Pony.ai circulando impávidos — estima-se que em breve devam chegar ao mercado. A conclusão parece evidente, embora o nó ético — a quem culpar quando algo dá errado — seja incômodo.
Tudo somado, por mais que embarcar em um carro autônomo exija alguma coragem e possa despertar certa aflição, a tecnologia tem tudo para ser assimilada pelas futuras gerações com a mesma naturalidade demonstrada por quem adotou elevadores sem ascensorista no passado. Os especialistas garantem que a inteligência artificial é mais segura justamente por ignorar fatores que costumam causar acidentes quando alguém de carne e osso se senta no banco do motorista. “O carro autônomo não bebe álcool, não fala ao celular enquanto dirige, nem faz escolhas imprudentes”, diz Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes. O piloto sumiu, e essa era a ideia. Desta vez, porém, não há motivo para pânico. Mas vá dizer isso em São Francisco…
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858