Se Emmanuel Macron tem alguma carta na manga para preservar seu legado depois de dissolver sem necessidade a Assembleia Nacional e antecipar uma eleição que era sabidamente perdida — e que perdeu —, ela continua escondidíssima. Da votação, saiu vencedora a Nova Frente Popular, uma coalizão de esquerda que abomina o atual presidente (no que é plenamente correspondida) e fez 193 dos 577 deputados. Em segundo ficou o centrista Renascimento, de Macron, com 159, graças a uma relutante aliança com os rivais esquerdistas para conter o avanço do Reagrupamento Nacional, da direita radical, que acabou em terceiro, com 143 cadeiras. Posto diante dessa salada, o presidente demorou dois meses para indicar um novo primeiro-ministro, que certamente não atende ao clamor das urnas: Michel Barnier, veterano político de 73 anos, é filiado ao Republicanos, herdeiro do gaullismo histórico e quarto colocado na votação (39 assentos). Barnier, por sua vez, custou mas enfim formou um gabinete que, na contramão das urnas, privilegia a ala conservadora, ignora os progressistas e tem tudo para acirrar os ânimos da política francesa.
Ao justificar as escolhas, Macron citou a necessidade de “estabilidade” — hoje um artigo de luxo na França que Barnier e seus ministros, quase todos saídos do centro e da direita, têm poucas chances de garantir. “É um governo ilegítimo. Se a direita tivesse vencido, a direita teria governado”, bradou, cheio de indignação, o líder da esquerda mais radical, Jean-Luc Mélenchon. Nem mesmo figuras ligadas a Macron entenderam muito bem a manobra. “Compreendo que os eleitores podem se sentir frustrados com esse governo, que não representa o resultado da eleição legislativa”, admitiu Roland Lescure, ministro da Indústria na administração anterior, enquanto o próprio Renascimento avisava que aceita Barnier, mas não lhe dará carta branca.
Pela primeira vez desde que a Quinta República foi estabelecida, em 1958, a França passa a ser governada por uma coalizão minoritária formada por partidos que se opuseram na votação antecipada — e cuja sobrevivência na Assembleia dependerá, para espanto geral, do mesmo Reagrupamento Nacional que Macron convocou os franceses a rejeitar e que, na ordem atual das coisas, compartilha com Barnier posicionamentos importantes, sobretudo em relação à imigração. Uma das nomeações marcantes é a do ministro do Interior, Bruno Retailleau, conservador que já pressionou por cortes em assistência médica a estrangeiros não documentados e se envolveu em polêmica ao sugerir que imigrantes de segunda e terceira gerações são menos franceses do que os integrantes de famílias tradicionais.
Uma semana após a nomeação do primeiro-ministro, 100 000 pessoas foram às ruas de Paris e outras grandes cidades em protesto contra a indiferença de Macron aos resultados eleitorais. Gabinete formado, as ameaças de uma moção parlamentar de desconfiança colocam o novo governo sob pressão antes mesmo de começar a trabalhar. Nesse contexto, o Reagrupamento Nacional, comandado por Marine Le Pen e seu garoto-prodígio, o deputado Jordan Bardella, tem a baguete e o queijo na mão para evitar que uma moção dessas seja aprovada e permitir a passagem de projetos de lei. Ou não — dois dias após o anúncio do gabinete, Bardella afirmou ser este “um governo sem futuro”. A extrema direita, no entanto, evita derrubar pontes e conta com seu novo — e inesperado — papel de fiel da balança para reforçar as chances de ganhar a eleição presidencial em 2027. “O RN almeja estar em posição de vencer contra adversários divididos e desacreditados”, diz o cientista político Frédéric Sawicki, da Sorbonne. Em seu discurso na Assembleia em 1º de outubro, Barnier deve apresentar o novo orçamento repleto de cortes — a França não está cumprindo os limites de déficit e dívida públicos estabelecidos pela União Europeia. Será sua primeira prova de fogo — e quem sabe a última.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912