Relatos públicos das torturas realizadas a prisioneiros pela Agência de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) vieram à tona pela primeira vez na última quinta-feira, 29, durante o julgamento do paquistanês Majid Khan, de 41 anos. Único residente legal americano conhecido preso em Guantánamo, Khan se tornou mensageiro da Al Qaeda e ficou preso entre 2003 e 2006.
O paquistanês deu detalhes sobre as alimentações forçadas, sessões de afogamentos e outros abusos físicos e sexuais que sofreu durante seu período de detenção. Por mais de duas horas, Khan falou das condições das celas, das humilhantes situações de nudez — às vezes acorrentado de uma forma que o impedia de dormir –, e os constantes quase afogamentos em águas geladas.
De acordo com ele, desde o momento de sua captura no Paquistão, em 2003, houve cooperação com seus captores, detalhando tudo o que sabia na esperança de ser libertado. No entanto, as sessões de tortura não se encerarram. O relato dramático ocorre em um julgamento no qual oito oficiais dos Estados Unidos irão definir a sentença oficial de Khan, que pode durar de 25 a 40 anos de prisão, após sua confissão em fevereiro de 2012, tida como amplamente simbólica.
Sem o conhecimento dos jurados, o paquistanês e seus advogados chegaram a um acordo secreto com um alto funcionário do Pentágono para que sua real sentença tenha fim já em 2025 por conta de sua cooperação. Khan se disse culpado pelas acusações de terrorismo, incluindo assassinato em violação da lei de guerra, e por entregar 50.000 dólares a Al-Qaeda, quantia que financiou um ataque em 2003, data em que já estava na prisão — ele disse não saber como o dinheiro seria usado.
Khan admitiu ainda ter tramado uma série de outros atentados com Khalid Sheik Mohammed, apontato como o mentor dos ataques de 11 de setembro, inclusive a tentativa fracassada de assassinar o então presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, alidado americano na guerra contra o terrorismo.
A sentença foi adiada por quase 10 anos para dar ao acusado uma nova chance de cooperar com os promotores federais e militares em casos de terrorismo. No decorrer dos anos, promotores e advogados de defesa entraram em conflitos constantes sobre quem deveria ser chamado para testemunhar sobre os abusos vividos pelo prisioneiro.
No tribunal, na última quinta, Khan leu um relato de 39 páginas no qual não identificava diretamente agentes da CIA ou de outras agências de inteligência estrangeiras que tiveram papel em sua detenção. Ele expressou ainda remorso por ferir as pessoas e por ter se juntado ao islamismo radical e a Al-Qaeda, porém encontrou uma maneira de contornar as proibições e contar ao mundo os abusos que sofreu no período em que esteve preso.
“Para aqueles que me torturaram, eu os perdoo. Espero que no dia do julgamento Alá possa fazer o mesmo por mim. Peço perdão àqueles a quem prejudiquei e magoei”, disse.
Majid Khan descreveu que foi espancado nu enquanto passou por longos períodos acorrentado — às vezes preso a uma parede e agachado “como um cachorro”, ou com os braços estendidos acima da cabeça e acorrentado a uma viga dentro de sua cela. Ele foi mantido na total escuridão e arrastado, encapuzado e algemado, com sua cabeça batendo no chão e nas paredes enquanto era movido entre as celas.
Antes da CIA o transferir de um complexo para outro, um médico inseriu nele um enema e o colocou em uma fralda presa por fita adesiva para que ele não precisasse ir ao banheiro durante os voos, além de ter seu rosto coberto por fita adesiva em algumas oportunidades. Enquanto estava detido em um país muçulmano, lhe era permitido rezar, porém nos Estados Unidos era frequente a proibição.
Relatos anteriores feitos por seus advogados diziam que ele havia sido privado do sono por tanto tempo que começou a ter alucinações dentro de sua cela. Além disso, Khan ganhou notoriedade após um relatório feito pelo senado americano dizendo que, depois de ter recusado a comer, seus captores introduziram um purê de seu almoço através de seu ânus, no que a CIA chamou de realimentação retal — o paquistanês alegou ter sido estuprado.
A Agência bombeava ainda água pelo ânus de prisioneiros que se recusavam a beber água. O procedimento era feito com mangueiras de jardim conectadas à torneira e ao orifício. Khan alega ter perdido o controle do intestino após esses episódios e que sofre com as consequências até os dias de hoje.
O paquistanês afirmou que os agentes eram sádicos às suas greves de fome e outros atos de rebelião. Os médicos inseriam rudemente um tubo de alimentação em seu nariz e na parte de trás de sua garganta. A CIA se recusou a comentar as descrições oferecidas na audiência, se limitando a dizer que o programa de detenção e interrogatório terminou em 2009.
Os advogados pediram permissão para que a esposa e a filha de Khan, nascida após a sua captura, pudessem viajar aos Estados Unidos para acompanhar o julgamento, que foi negado. Como ele nunca se tornou cidadão americano — apenas adquiriu o status de residente permanente quando menino –, as duas são consideradas cidadãs paquistanesas.
Majid Khan nasceu na Arábia Saudita e foi criado no Paquistão, se mudando para os Estados Unidos quando tinha 16 anos, após seu pai adquirir um posto de gasolina no país. Ele se formou em um colégio no subúrbio de Baltimore e trabalhava para uma empresa de telecomunicações que administrava o sistema telefônico do Pentágono na época dos ataques do 11/9, em 2001.
O paquistanês disse ter vivido como um filho de uma tradicional família paquistanesa e um adolescente americano que “fumava maconha ocasionalmente e cheio de namoradas”. Depois que sua mãe morreu, meses antes dos atentados, ele sentiu-se atraído para a prática do Islã e rejeitou a ideia de que os muçulmanos estivessem por trás dos ataques.
Durante uma viagem de família ao Paquistão, em 2022, ele teve contato com parentes que haviam se juntado a Al-Qaeda e, como estava vulnerável, optou por se aliar ao grupo.
“Fui de boa vontade. Eu fui incrivelmente estúpido. Eles prometeram aliviar a minha dor e purificar os meus pecados. Prometeram-me redenção e eu acreditei”, disse.