Na pulsante Madri, o bairro de Salamanca oferece um luxuoso corredor de lojas e bons restaurantes, um parque que dá trégua à efervescência urbana e a experiência única do Museu do Prado, onde é impossível não se deixar encantar por As Meninas, a magistral tela de Diego Velázquez que intriga por embaralhar realidade e ilusão. Pois essa área e suas imediações vêm sendo sacudidas por ventos que renovam a paisagem, em um movimento insuflado por uma polpuda leva de investimentos estrangeiros. O dinheiro não aporta na capital espanhola por obra do acaso, mas como resultado de uma persistente política fincada sob o slogan “Menos impostos e menos leis”, uma dobradinha que já alça a cidade à número 1 em atração de capital de fora no setor residencial e a que mais rapidamente escala posições no ranking dos centros financeiros europeus — ocupa a quarta colocação na lista, atrás dos tradicionais Londres, Paris e Frankfurt.
O conjunto de medidas que envolve generosos incentivos fiscais e um radical choque antiburocracia começou a ser implantado em 2016, quando o Reino Unido dava os primeiros passos para o Brexit. Aí se abriria naturalmente uma janela para empresas temerosas das incertezas e interessadas em seguir sob o guarda-chuva da União Europeia. Quando veio a pandemia, o pacote se expandiu, mirando desemperrar as engrenagens da economia, castigada pelas circunstâncias. Em 2021, enquanto o governo espanhol elevava o imposto de renda em 2%, a capital enveredava por rota inversa, reduzindo 0,5%. Na quinta-feira 16, o governo local aprovou mais uma baixa nos encargos que recaem sobre investidores estrangeiros — quem transferir residência fiscal para lá terá direito a uma dedução de 20%, seja em ativos financeiros, seja em imóveis.
Embaladas pelas facilidades madrilenhas, multinacionais como IBM, Oracle, JP Morgan e a farmacêutica Moderna se instalaram na cidade, o que desencadeou um ciclo virtuoso no qual 16 000 empresas tomaram a mesma rota no ano passado — um recorde histórico. No fim de 2022, a Meta, que já tem sede na cidade, soltou um comunicado anunciando o plano de “colocar a Espanha no centro do futuro da companhia”. No rol dos recém-chegados, veem-se muitos latino-americanos — eles depositaram em Madri mais de 600 milhões de euros nos primeiros meses de 2022, uma subida de 180% na comparação com o ano anterior. “Ali virou uma porta de entrada na Europa para o capital da América Latina”, afirma o economista Jesús Lizcano Alvarez. Observou-se, inclusive, uma curiosa mudança de rumo no mapa dos investimentos — dinheiro que era canalizado para Miami, outra cidade que implantou uma agressiva cartilha de atração de moedas de todas as nacionalidades, agora desembarca na terra onde viveu Miguel de Cervantes.
Os que chegaram por lá antes dos demais desfrutam hoje as vantagens do pioneirismo. Era 2013, e a Europa ainda penava com a crise financeira global, quando os irmãos Alex e Miguel Ángel Capriles, da família de um dos figurões da oposição venezuelana Henrique Capriles, começaram a erguer apartamentos de luxo no Centro, onde agora o preço dispara sob o impulso da abundância de estrangeiros. No ano passado, foi a vez da Be Grand, um dos gigantes da incorporação imobiliária de alto padrão do México, apostar em nobres áreas da metrópole. A brasileira Havaianas também está lá, fincando em solo madrilenho a base de sua divisão internacional. “A injeção desses recursos se faz cada vez mais visível no dia a dia da cidade”, diz a especialista em finanças Ana Gisbert, da Universidade Autônoma de Madri.
A oposição acusa o governo de fazer de Madri um paraíso fiscal, aprofundando desigualdades, mas os números apontam para um avanço do PIB local de quase 5%, enquanto o da UE foi de 3,8% — argumento oficial para sustentar e intensificar as vantagens para a turma de fora. Na eterna rixa com Barcelona, Madri leva, de longe, a melhor nesse quesito — 70% dos recursos internacionais vão para lá versus os 10% que irrigam a vibrante cidade catalã. E a capital do país não para de se remodelar, o que enche os olhos de portadores dos mais variados passaportes: de 10% em 2017, eles representam hoje 15% da população. É gente de todo canto que aproveita a onda de repaginação urbana em marcha e ainda pode dar um pulinho no “triângulo dourado da arte”, um circuito de três espetaculares museus incluindo o Prado, onde a alma se preenche com a beleza de mestres como Goya, El Greco e Velázquez. Como lição para as cidades e para o governo brasileiro, fica a reflexão: não é fácil produzir artistas com talento tão sublime de uma hora para a outra — talvez eles jamais possam ser igualados. Mas cortar impostos e simplificar a burocracia é possível, sim.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830