Mal o primeiro soldado russo havia pisado em solo ucraniano, em fevereiro do ano passado, e a Polônia se mobilizava para ajudar o vizinho a enfrentar o invasor. De lá para cá, a rede de apoio só fez aumentar: foram despachados para a Ucrânia os tanques poloneses da era soviética, com os quais a tropa de todos os ex-satélites está familiarizada, um aeroporto civil próximo à fronteira, cercado de uma barreira de mísseis, virou rota de passagem de armamentos para Kiev e, mais recentemente, oito MIG-29 da frota polonesa passaram a integrar a Força Aérea ucraniana — a primeira injeção de caças na estrutura bélica do país. Em extraordinário gesto para uma nação que tem alergia a imigrantes, as portas foram abertas para 1,3 milhão de refugiados. Por tudo isso, Varsóvia ganhou prestígio e se tornou escala de lideranças globais: o presidente americano Joe Biden esteve lá duas vezes e, no começo do mês, o ucraniano Volodymyr Zelensky foi recebido com honras pelo colega Andrzej Duda. “A Ucrânia nunca esquecerá a magnanimidade que a Polônia nos demonstra”, disse Zelensky.
Compartilhando uma fronteira de 500 quilômetros, a Polônia era a candidata mais natural a canalizar o incessante fluxo de armas e recursos dos Estados Unidos e da Europa para a Ucrânia invadida. A boa vontade certamente foi estimulada pela histórica hostilidade dos poloneses para com tudo que vem da Rússia, potência que dominou o país durante boa parte do século XX. Seja qual for sua motivação, o fato é que, por sua firmeza ao lado da Ucrânia, a Polônia tem conseguido sair das beiradas e alcançar papel central nas decisões sobre a guerra e suas consequências.
A posição é reforçada pela estabilidade econômica: o país cresce sem parar desde a implosão da União Soviética. Boa parte desse progresso se deve às generosas transferências do bloco europeu para que países do Leste pudessem superar o atraso — só ela recebeu 213 bilhões de euros. Além disso, a transição do socialismo para a economia de mercado foi bem-sucedida, com uma legislação que facilitou a rápida privatização de estatais e o estabelecimento de um arrojado capital privado. Tirando proveito da mão de obra barata, a indústria floresceu, atraindo montadoras de automóveis, fabricantes de peças e projetos de infraestrutura. No crucial setor digital, Cracóvia e Varsóvia se tornaram canteiros de startups e o setor movimenta 24 bilhões de euros anualmente. A renda per capita se multiplicou por quatro, chegando a 6 400 dólares. O PIB é o quinto maior da União Europeia e, segundo o Banco Mundial, pode ultrapassar o do Reino Unido até 2030. “A Polônia fez a mais bem-sucedida integração com o capitalismo europeu entre os países do Leste”, avalia Marcin Piatkowski, professor da Universidade Kozminski, em Varsóvia.
Mesmo com tantos pontos a favor, porém, o governo polonês segue, junto com a Hungria, na lista de desobedientes da União Europeia, pela propensão a atropelar liberdades civis, controlar a imprensa e manipular a Justiça em prol de um nacionalismo exacerbado. Desde 2015, quando o direitista Partido Lei e Justiça chegou ao poder, a Polônia praticamente proibiu o aborto, promove implacável campanha contra a “ideologia LGBT” e se recusa a receber imigrantes da África e Oriente Médio. O maior ponto de discórdia com a UE, no entanto, é o enquadramento do Poder Judiciário, com a aberta perseguição de juízes que tomem decisões desfavoráveis ao regime. Por julgar que essa situação é incompatível com seus princípios, a Comissão Europeia, órgão executivo do bloco, bloqueou a transferência de 35 bilhões de euros em assistência pós-Covid à Polônia, motivo de enorme desagrado no governo do primeiro-ministro Mateusz Morawiecki.
Alegando que o país já voltou atrás em algumas medidas (sem maior impacto no aperto geral do Judiciário), seu antecessor, Jaroslaw Kaczynski, presidente do Lei e Justiça que de fato manda no governo, queixou-se em entrevista recente: “Mostramos a máxima boa vontade, mas nossas concessões não levaram a nada” — tudo isso em meio a um movimento para tentar depor a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen. Premida entre duas frentes de batalha, uma militar e outra diplomática, a Polônia anunciou agora que não vai mais importar nem deixar passar por seu território cereais exportados pela Ucrânia, porque o excesso de oferta está prejudicando a agricultura nacional. Por trás do anúncio, o recado do agora bem mais poderoso vizinho: somos bonzinhos até certo ponto.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838