Para as hostes de americanos insatisfeitos, que embarcaram com fé nas promessas de Donald Trump virar o país a seu favor nem que fosse a pontapés, o presidente que sai continua a ser herói. Mas algo mudou nos estertores finais do governo Trump: seu domínio sobre o Partido Republicano esgarçou-se, talvez definitivamente, depois que apoiadores, instigados por sua retórica de confronto, partiram para a ignorância e invadiram o Capitólio, a sede do Legislativo, o poder que emana do povo. Por causa desse escandaloso ataque às instituições democráticas justamente no país que há mais tempo as preserva intactas, políticos alinhadíssimos com a Casa Branca se distanciaram ou mesmo condenaram publicamente o presidente pelo discurso que insuflou a turba. Grandes doadores republicanos anunciaram a suspensão ou, no mínimo, a reanálise de planos de injetar recursos com vistas à eleição de 2024. Caciques que se viram atropelados pelo tanque trumpista aproveitaram para erguer a voz contra o chefe que nunca engoliram. Faltando poucos dias para a posse de Joe Biden, Trump enfim se encaixou no termo pejorativo aplicado aos mandatários no fim da linha, contra o qual tanto esperneava. Tornou-se um lame duck — o “pato manco” que se desgarra do bando e passa a ser presa fácil para os inimigos.
Imediatamente após a invasão e depredação do Congresso, um tumulto com cinco mortes, parlamentares democratas começaram a se movimentar em duas frentes. Exigiam que o vice Mike Pence invocasse a 25ª emenda à Constituição e afastasse Trump por incapacidade para governar. Caso isso falhasse, acionariam as engrenagens para um segundo pedido de impeachment (o primeiro, há um ano, acabou rejeitado). Pence, um dos obedientes seguidores que, no auge da crise, achou por bem manter distância do chefe, recusou-se a afastá-lo “neste momento tão grave da vida da nação”. Apresentou-se então o pedido de impeachment na Câmara, aprovado inclusive por dez deputados republicanos. Mais um feito inédito para Trump: o único presidente americano a sofrer dois pedidos de afastamento.
O recurso agora segue para o Senado, onde até o dia 20 Trump tem maioria. Depois disso, o placar da nova legislatura está empatado 50 a 50, sendo o voto de minerva da vice democrata Kamala Harris, na posição de presidente da Casa. É esse Senado dividido ao meio que vai debater e julgar o impeachment pedido pela Câmara — uma preocupação para Biden, já que os trabalhos podem tirar a atenção de seu início de governo. Ao contrário do primeiro processo, sem nenhuma chance de passar, esse agora, baseado na contundente acusação de “incitação à insurreição”, levou um punhado de senadores a ameaçar mudar de lado, deixando o resultado incerto. Até o líder republicano, Mitch McConnell, um pilar do trumpismo, teria comentado com interlocutores que o presidente de fato cometeu crimes passíveis de impeachment. Caso seja aprovado, uma segunda votação, essa de maioria simples, deve anular a chance de Trump se eleger novamente. “Cassar seus direitos políticos virou prioridade, para impedir que ele cause mais danos ao país”, diz Theodore Shaw, professor de direito da Universidade da Carolina do Norte.
Abalado pelo vacilo de políticos que sempre o apoiaram, pela demissão de membros do gabinete e pela debandada de doadores de peso — nomes como AT&T, Marriott, Airbnb, Microsoft, Citibank —, e ainda por cima com as contas bloqueadas no Twitter, Facebook e YouTube (veja reportagem na página 24), Trump falou pouco nos últimos dias. Em uma rápida coletiva, assegurou que seu discurso incendiário foi analisado palavra por palavra (não se sabe por quem) e julgado “totalmente apropriado”. Também qualificou o pedido de impeachment de “ridículo”, alertou para a “tremenda raiva” que a medida vem despertando no país e ressalvou, sem corar: “Não quero violência”.
Em outro momento, no Texas, posando em frente ao momentoso muro anti-imigrantes que prometeu erguer na campanha de 2016, pavoneou-se: “Falaram que não íamos conseguir e conseguimos. Demos 100% do que vocês queriam” — na verdade, apenas 720 dos 3 200 quilômetros de fronteira com o México estão murados. Na ocasião, também afirmou que acredita “na força da lei, não na violência e no tumulto”. Mais tarde, novo vídeo presidencial desmentiu boa parte das cenas que o mundo inteiro viu, ao vivo e em cores, na invasão do Congresso. “Tumultos vão contra tudo o que acredito e o que nosso movimento representa. Nenhum verdadeiro apoiador meu poderia endossar a violência política. Nenhum verdadeiro apoiador meu poderia ameaçar e intimidar outros americanos”, disse, muito sério, o presidente que já demonstrou amplamente ser adepto da repetição incessante de mentiras como se fossem verdades, a exemplo de propagadores compulsivos de invencionices que vão de nazistas a ditadores de repúblicas bananeiras. A propósito: nas últimas falas, nenhuma palavra foi dita a respeito daquela tal “eleição roubada”.
Não há consenso sobre como os caciques tradicionais do Partido Republicano vão lidar com o legado de Trump. A maioria quer vê-lo pelas costas, mas não pode deixar de ter em mente que o presidente que sai contava, antes da invasão, com impressionantes 90% de aprovação entre eleitores do partido. “Trump travou intensa batalha contra o establishment republicano na primeira campanha. A tensão atenuou-se ao longo de seu governo, mas agora volta com força total”, frisa Michael McDonald, cientista político da Universidade da Flórida. Ele também deixa marcas sólidas, nos Estados Unidos e no exterior. Um quarto dos juízes na ativa foi indicado por ele e saiu das alas mais conservadoras. Cortes de impostos e suavização de exigências ambientais, entre outras medidas, ativaram a economia a ponto de fazer dela o maior trunfo eleitoral de Trump antes de a pandemia chegar, parar tudo e pôr seus feitos por terra. Ele levou ao limite a confrontação com a China, impôs barreiras tarifárias a parceiros históricos na Europa e, no Oriente Médio, promoveu uma aproximação entre Israel e as monarquias árabes do Golfo Pérsico com potencial explosivo, no intuito comum de deter o Irã.
Não será o segundo pedido de impeachment nem a cassação de direitos políticos que apagarão o nome de Trump da história republicana de uma hora para outra. Mas os acontecimentos dos últimos dias sem dúvida chacoalharam os alicerces do partido e de todo o país. A Washington que receberá o juramento de Biden (sem Trump — ele avisou que não vai) virou praça de guerra. No pedaço onde se concentram os edifícios públicos, barreiras de concreto e caminhões bloqueiam os acessos. Só a Guarda Nacional convocou 20 000 homens para patrulhar a cidade — centenas deles foram fotografados dormindo, amontoados, pelos corredores e salões do Congresso. O FBI vem mapeando ameaças específicas contra Biden, a vice Kamala Harris e a presidente da Câmara, Nancy Pelosi. Não é só a capital — as polícias de todas as metrópoles estão em alerta máximo para conter possível movimentação de milicianos e extremistas. Um presidente americano que toma posse precisando de segurança armada contra outros americanos — essa cena lamentável vai custar a se apagar da memória dos Estados Unidos.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721