Nascido para reinar, Charles, filho mais velho de Elizabeth II, esperou uma vida inteira por sua vez no trono. Ela enfim chegou em setembro, quando a mãe morreu, aos 96 anos e setenta de reinado, e o eterno príncipe herdeiro se tornou Charles III, soberano por direito divino do Reino Unido e de um mirrado grupo de nações remanescentes do vasto império onde, nos áureos tempos, o sol nunca se punha. A promoção foi imediata e automática, obedecendo à antiga máxima de que Rex nunquam moritur, ou “o rei nunca morre”. Faltava o ritual da coroação, ápice da nova era carolina, e agora ele também chegou.
No sábado 6, em uma cerimônia de tradição milenar emoldurada pelo fausto e a suntuosidade que se espera da mais rica e influente família real ainda em atividade, Charles seria, pela ordem, reconhecido, jurado, ungido, coroado, entronizado e, por fim, receberia o voto de lealdade dos súditos. Em seu próprio momento de glória, a mulher dele, Camilla, também poria na cabeça a coroa de rainha. Rainha consorte, é fato, mas a segunda parte foi dispensada há meses nos comunicados palacianos, dando à mulher de Charles o mesmo tratamento dispensado a cônjuges de reis no passado. De posse de todos os títulos e objetos que lhe são de direito, o novo monarca, aos 74 anos (o mais velho a receber a coroa), tem de enfrentar sem maiores delongas seu grande desafio: imprimir uma marca positiva a um reinado que começa morno em popularidade e fervendo em picuinhas domésticas.
Universalmente admirada nos seus últimos anos de vida, Elizabeth passou por diversos maus bocados ao longo da extensa carreira — marido infiel, irmã infeliz, filhos com casamentos desfeitos, realeza desconectada das mudanças na sociedade. Mas teve três quartos de século para levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima de cada um deles e se reinventar como uma anciã lépida, fagueira e indispensável para a preservação da alma nacional. Charles, ao contrário, tem pouco tempo para se firmar como um soberano respeitável, projeto que embute a necessidade de se descolar da mãe. Daí a rapidez com que o Palácio de Buckingham incutiu um tom moderno (o mais possível em um ritual de 900 anos) à própria coroação.
A cerimônia de Elizabeth, em 1953, quando ela tinha 27 anos — o primeiro evento transmitido ao vivo pela TV no Reino Unido, visto por 27 milhões de pessoas —, durou três horas e comprimiu na Abadia de Westminster 8 000 pessoas, aí incluídos todos os nobres do reino. A de Charles, acessível nas telas de todo o planeta e com público previsto de bilhões, foi planejada com uma hora a menos e 2 000 convidados, a maioria de fora da corte. “A coroação de Elizabeth II refletia o poder do império, do cristianismo e da aristocracia. Esses três pilares ruíram e seu filho quer agora passar uma mensagem mais global e inclusiva”, avalia Craig Prescott, especialista em monarquia da Universidade Bangor, no País de Gales. “O rito de cada coroação é um sinalizador de como a monarquia se posicionará”, concorda Lawrence Goldman, historiador da Universidade de Oxford.
À pompa e circunstância tradicionais da coroação se misturariam diversos acenos à diversidade étnica, cultural e religiosa do reino, o que, além do ar de modernidade, é interpretado como uma reação aos ventos republicanos que sopram em vários cantos. Um dos pepinos que Charles III tem pela frente é justamente convencer catorze países da Commonwealth, a associação das ex-colônias, a seguirem sendo monarquias constitucionais. Enquanto a rainha estava viva, os reticentes se contiveram, mas nem bem ele ascendeu ao trono e Antígua e Barbuda, Jamaica e Austrália já deram recados claros de que, ao menos nessas ilhas, a coroa está a perigo. Mais impactante ainda é o impulso antimonárquico presente logo ali ao lado, na Irlanda do Norte e na Escócia — duas pontas do quarteto que, junto com Inglaterra e País de Gales, forma o Reino Unido. Não por acaso, textos em gaélico, idioma antigo comum a escoceses e irlandeses, foram incluídos pela primeira vez na cerimônia oficial.
Os maiores obstáculos para Charles III e a máquina do Palácio de Buckingham provarem que a monarquia continua relevante em uma nação moderna após a morte de Elizabeth, porém, estão dentro de casa — ou, no caso, dos palácios e castelos. A começar pelo próprio rei, que no decorrer de sua já longa existência firmou nos súditos a imagem de um sujeito simpático, mas meio sem noção e sem carisma. Para piorar os ânimos, foi amante nada secreto durante décadas de Camilla, a mulher casada que, aos olhos do público, envenenou a união de conto de fadas com a estimada princesa Diana, mãe de seus dois filhos, tragicamente morta em um acidente de carro, em 1997. Aos 75 anos, Camilla é um capítulo à parte no rol de problemas que ronda Charles. Hoje plenamente integrada à casa real (partiu de Elizabeth a decisão de que recebesse o título de rainha, e não princesa, como primeiro se aventou), graças a um monumental trabalho de transformação e aceitação pública empreendido pelo palácio e por ela mesma — que, ao contrário do marido, parece esbanjar determinação e jogo de cintura. A nova rainha, mesmo assim, será sempre difícil de engolir.
A mais profícua fonte de turbulência no voo de rei Charles III, no entanto, é seu caçula, Harry, o filho pródigo que, desdizendo a parábola, quer mais é implodir a casa paterna. Radicado na Califórnia, o príncipe, que famosamente renunciou aos privilégios de senior royal, a nata da realeza, confirmou presença na coroação — sozinho, sem a duquesa-problema Meghan e sem seus dois principezinhos, Archie (que faz 4 anos no mesmo dia, desculpa formal para a ausência da mãe) e Lilibet, 2. Será a primeira vez que pai e filho se encontram desde o lançamento da explosiva autobiografia de Harry, Spare (“estepe”, o segundo filho que, em caso de morte ou abdicação, ocupa o lugar do herdeiro, o heir) —, na qual ele expõe momentos de insensibilidade de Charles, descreve a cena em que um empurrão de William, segundo ele um príncipe de pavio muito curto, o derrubou no chão, ferindo as costas, e se alonga sobre Camilla, até então um assunto tabu na família. Harry conta que os dois irmãos imploraram ao pai que não se casasse com ela, por receio de que se tornasse uma “madrasta malvada”, e a acusa de, pelas costas, cultivar boas relações com a imprensa à custa de inconfidências sobre os enteados.
Mais recentemente, Harry voltou à carga com novo torpedo familiar. Em um processo conjunto de celebridades contra os excessos dos tabloides, que chegam a grampear telefones e se infiltrar em suas casas, o príncipe revelou, em depoimento escrito de 31 páginas, que, em 2020, o Palácio de Buckingham negociou com um jornal um acordo secreto que determinou o pagamento de “uma grande quantia de dinheiro” ao irmão William. No toma lá dá cá, o palácio jogou para debaixo do tapete uma comprovada ação de hackers para espionar o príncipe e, em troca, garantiu cobertura favorável aos royals, um tipo de pacto que ele afirma ser frequente entre as duas partes.
As relações para lá de estremecidas devem dar ao príncipe rebelde papel secundário na solene cerimônia. Igual situação que se antecipa para Andrew, o filho-problema de Elizabeth (e também supostamente seu preferido), enroscado em denúncias de sexo com meninas menores de idade “emprestadas” pelo amigo predador Jeffrey Epstein, financista americano morto na prisão em 2019. Por esses e outros escândalos, e pelas circunstâncias do mundo contemporâneo, a monarquia pós-Elizabeth patina — embora 58% dos britânicos sejam a favor dela, o apoio teve queda vertiginosa frente aos 80% de 2012. Entre os jovens de 18 a 24 anos, só 32% querem sua permanência e os movimentos de oposição ganham força e visibilidade.
Por mais que Charles se esforce para manter o legado da mãe sem ser continuamente comparado a ela, a monarquia, sob seu comando, deve perder ao menos parte do fascínio e da contribuição para a formação da identidade britânica que a sustentam. “Os súditos tinham reverência por Elizabeth. O máximo que o novo rei pode esperar é respeito”, diz, sem papas na língua, Sue Woolmans, historiadora da realeza britânica. No teste da popularidade, os números são contundentes. Primeira conclusão: ninguém chega perto dos 80% de aprovação de Elizabeth II. Segunda conclusão: com 55% (que já são 12 pontos a mais do que antes de virar rei), o rei Charles continua a sentir na pele rosada o peso da real sem-gracice. Com meros 38%, Camilla só ganha de Harry (29%) e de Meghan (23%), a americana divorciada e não branca que os jornais populares adoram demonizar por ter, segundo eles, tirado o príncipe do bom caminho.
Na desgastada família Windsor, salvam-se com louvor junto ao público William e Kate, os príncipes de Gales, empatados com 65% de aprovação. Bonito, bem-vestido, dotado de grande traquejo social e com três filhos adoráveis, o casal tem tudo para, uma vez no trono, repor ao menos em parte o brilho da monarquia — se ele não tiver se apagado de vez até lá. Espremido entre o passado e o futuro, o rei Charles III, depois de esperar tanto pela sonhada coroação, tem pouco a fazer além de manter a calma e seguir em frente. Sempre sorrindo e acenando, enquanto engole sapos.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840