ONU pede preservação de provas de limpeza étnica contra rohingyas
Relatora das Nações Unidas pede construção de espaço em Bangladesh para apurar ataques cometidos em Mianmar que, segundo ela, 'têm marcas de genocídio'
A relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação dos direitos humanos em Mianmar, Yanghee Lee, propôs na segunda-feira criar uma estrutura fixa em Bangladesh que permita documentar e preservar provas da limpeza étnica perpetrada contra a comunidade rohingya para poder usá-las em um eventual processo judicial.
“Estou cada vez mais convencida de que os crimes cometidos após as noites de 9 de outubro de 2016 e de 25 de agosto de 2017 têm as marcas do genocídio e, nos termos mais fortes possíveis, clamam pela prestação de contas”, afirmou Lee ao apresentar seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Para facilitar um processo contra os responsáveis, a especialista pediu que se estabeleça uma estrutura fixa, sem especificar exatamente de que tipo, que possa realizar investigações críveis sobre o ocorrido durante as duas últimas ondas de violência no país: em outubro do 2016 e em agosto de 2017.
“Recomendo o estabelecimento de uma estrutura que esteja baseada em Cox’s Bazar (Bangladesh) sob auspício da ONU para investigar, documentar, coletar, consolidar, analisar e manter evidências de violações aos direitos humanos, e facilitar o trabalho de procedimentos judiciais imparciais, justos e independentes, sejam eles nacionais ou internacionais”, destacou a especialista.
Após a violência de outubro de 2016, pelo menos 74.000 rohingyas, uma etnia muçulmana, cruzaram a fronteira entre Mianmar e Bangladesh para fugirem das operações militares concluídas em fevereiro. A ONU e outras organizações internacionais denunciaram então que soldados mianmenses estariam cometendo vários abusos contra a população civil, entre eles assassinatos, violência sexual e incêndios propositais.
Esse confronto teria sido motivado por ataques promovidos por militantes rohingya a dezenas de postos policiais. Em resposta, o exército birmanês revidou com operações que o alto comissário da ONU para os direitos humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, classificou como “limpeza étnica”.
O mesmo padrão se repetiu após 25 de agosto de 2017. No entanto, a repressão alcançou níveis nunca vistos até aquele momento e o êxodo foi de 680.000 pessoas, segundo a apuração das agências da ONU. Em ambos os casos, os refugiados chegaram à cidade bengalesa de Cox’s Bazar, onde a relatora Yanghee Lee quer, precisamente, que se estabeleça a estrutura de coleta e preservação de provas.
Foi nessa cidade que a equipe da Missão de Investigação da ONU para Mianmar – estabelecida há um ano para averiguar as atrocidades de outubro de 2016, mas que estendeu seus trabalhos para incluir as de agosto de 2017 – realizou mais de 600 entrevistas com os refugiados.
Perseguição
O presidente da missão, Marzouki Darusman, confirmou hoje durante sua apresentação ao Conselho que a violência exercida contra a comunidade rohingya por parte das autoridades militares e policiais de Mianmar segue um padrão de décadas e simplesmente aumentou em intensidade com a passagem do tempo.
Darusman fez uma apuração detalhada dos abusos cometidos, que incluem execuções extrajudiciais, pessoas queimadas vivas no interior de suas casas, estupros coletivos e assassinatos a sangue frio de crianças, ações que foram definidas pela ONU como limpeza étnica e que cumprem com os requisitos para que sejam definidas como genocídio e como crimes contra a humanidade.
Ainda assim, só um Tribunal de Justiça Internacional pode decidir o nível do crime cometido e, no caso específico do crime de genocídio, dada sua gravidade, é necessário comprovar a intenção explícita de destruir completamente uma comunidade, etnia ou povo.
Lee usou sua intervenção para pedir às Nações Unidas uma “reflexão” sobre como a organização atuou após os acontecimentos de outubro de 2016 e se existia alguma possibilidade de fazer com que os abusos de agosto de 2017 pudessem ter sido evitados.
Quem são os rohingyas?
Os rohingyas são uma etnia de religião muçulmana que habita há séculos a área que atualmente corresponde à fronteira entre Bangladesh e Mianmar (antiga Birmânia). Ambos os países foram colônias britânicas. Com a dissolução do sistema colonial a partir de 1940, ambos se tornaram independentes. Enquanto Bangladesh possui uma população majoritariamente muçulmana e de etnia bengalesa, Mianmar é majoritariamente budista e composta por 135 etnias reconhecidas oficialmente.
Os rohingyas são considerados estrangeiros pelos mianmenses, pois muitos foram trazidos como trabalhadores na construção das ferrovias britânicas do século 19. Independentemente a qual lado da fronteira atual cada família rohingya pode traçar a origem de seus antepassados, a comunidade em Mianmar remonta a mais de 200 anos, com diversas gerações nascidas dentro dos limites atuais do país.
Por serem considerados estrangeiros, há décadas os rohingyas são discriminados pelas autoridades birmanesas — seus direitos vêm sendo paulatinamente extirpados e as perseguições, incitadas por monges budistas radicais como o clérigo Ahsin Wirathu, se tornado cada vez mais frequentes e violentas.
Atualmente, os rohingyas em Mianmar não podem casar, ter filhos, estudar, sair da cidade onde moram ou utilizar hospitais e transportes públicos sem autorizações especiais, que raramente são obtidas sem suborno, extorsão ou trabalhos degradantes. Os homens da etnia são também forçados a realizar trabalhos forçados ao longo de um mês por ano em diversas regiões do país.
Casos de gangues budistas perseguindo e esquartejando rohingyas são comuns no estado birmanês de Rakhine pelo menos desde 2010. Na capital do estado, a pequena cidade de Sittwe, centenas de casas de rohingyas foram incineradas e o bairro onde a etnia se concentrava foi terraplanado.
A principal rota de fuga das perseguições para os rohingyas é rumo oeste, cruzando o rio Naf, que é a fronteira natural com o país vizinho Bangladesh. Enquanto cruzam o rio, os rohingyas são frequentemente mortos a tiros por soldados birmaneses em postos de controle, ao passo que soldados bengaleses tentam impedir a entrada da etnia em Bangladesh.
Os bengaleses argumentam que já são um país hiperpovoado (são cerca de 170 milhões de habitantes em 147.570 km2, o equivalente a 85% da população brasileira em uma área um pouco menor que o estado do Ceará) e extremamente pobre, sem condições de receber o enorme contingente de rohingyas, apesar da afinidade étnica e religiosa.
Desesperados, milhares de rohingya que não conseguem realizar a travessia do rio Naf, se lançam todos os anos em canoas improvisadas pelo Oceano Índico na esperança de chegar em Bangladesh ou a outro país do sudeste asiático — outros destinos atraentes são a Tailândia e as muçulmanas Malásia e Indonésia. No entanto, há relatos frequentes de embarcações que desaparecem em alto mar. As embarcações que conseguem chegar à costa de Bangladesh muitas vezes são devolvidas ao mar. Há ainda relatos frequentes de coiotes que sequestram os rohingyas e os matam na tentativa de obtenção de resgate ou quando percebem que serão pegos na travessia terrestre rumo à Tailândia.
Por fim, há casos conhecidos de interceptação de botes motorizados com rohingyas pela marinha tailandesa, na qual o motor da embarcação é removido e os rohingyas são deixados à deriva em alto mar.
O Museu do Holocausto em Washington, nos Estados Unidos, uma das instituições americanas mais renomadas no estudo do Holocausto judeu durante a 2a Guerra Mundial e de assuntos relacionados a campanhas de limpeza étnica, classificou de “genocídio com paralelos ao Holocausto” a campanha de Mianmar contra os rohingyas. Esta é a primeira vez que a instituição denuncia um ato de genocídio nestes termos desde que foi fundada. A ONU classifica os rohingyas como “a etnia mais perseguida da atualidade” desde 2012.
(Com EFE)