A Câmara de Representantes, bastião democrata com o qual Donald Trump vive às turras, acaba de encaminhar ao presidente uma notícia boa e outra ruim. A boa: foram aparadas as arestas para a aprovação do Acordo Comercial Estados Unidos-México-Canadá, o substituto do Nafta que Trump apregoa, no tom hiperbólico de sempre, ser “o melhor e o mais importante pacto jamais negociado” pelo país. A ruim: o processo de impeachment entrou em ritmo acelerado. Depois de três meses de investigação, cruzamento de dados e depoimentos, as comissões encarregadas de desvendar o “Ucraniagate” protocolaram, bem antes do que se antecipava, um pacote com suas conclusões.
Relembrando: Trump, à base de métodos pouco republicanos como segurar a entrega de quase 400 milhões de dólares em ajuda militar, quis forçar o presidente Vladimir Zelensky a reabrir um inquérito sobre a presença do filho de seu adversário eleitoral Joe Biden no conselho diretor de uma empresa ucraniana enrolada em corrupção. O documento, de nove páginas, indicia Trump por abuso de poder e obstrução do inquérito (a Casa Branca proibiu funcionários públicos de ir ao Congresso para depor). “A estratégia dos democratas foi escolher as acusações mais fáceis para o público entender e as mais difíceis para a defesa contra-argumentar”, diz James Morone, cientista político da Universidade Brown, de Rhode Island.
O próximo passo, previsto para perto do Natal, é submeter ao plenário os argumentos para as duas acusações. “Se o que estamos discutindo não é motivo para impeachment, nada é”, afirmou Michael Gerhardt, professor de direito da Universidade da Carolina do Norte e um dos especialistas chamados a depor sobre a legalidade do processo. O documento produzido pelas comissões conclui que Trump pôs seus interesses pessoais acima do bem comum dos Estados Unidos. “A evidência de má conduta do presidente é esmagadora”, dispara o deputado Adam Schiff, presidente da Comissão de Inteligência. É praticamente certo que a maioria democrata dará aval à Câmara para que entregue formalmente um pedido de impeachment ao Senado — o palco do julgamento definitivo, que deve começar em janeiro.
Nesse ponto, Trump entrará para a história como o terceiro presidente americano a ter seus atos esmiuçados em um rito parecido com o de um tribunal do júri — os outros foram Andrew Johnson, em 1868, e Bill Clinton, em 1998. Richard Nixon chegou perto, mas, diante da gravidade das provas, renunciou, em 1974, antes da votação final na Câmara. Tanto Johnson quanto Clinton foram absolvidos no Senado, e é provável que Trump também escape, dono de sólida maioria na Casa. São necessários pelo menos dois terços dos votos dos senadores para que ele seja defenestrado da Casa Branca; os republicanos somam 53 das 100 cadeiras e devem, naturalmente, ficar todos ao lado do presidente. “Em uma votação secreta, o resultado talvez fosse diferente. Mas, com voto aberto, muitos republicanos temem represálias caso se oponham a Trump”, diz Thomas Whalen, cientista político da Universidade de Boston.
Um dos motivos para a correria dos democratas no andamento do pedido de impeachment é livrar dois de seus principais pré-candidatos, os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren, da obrigação de bater ponto todo dia no Capitólio para acompanhar o julgamento antes de a campanha para a eleição de novembro de 2020 pegar fogo de verdade. Outro é tirar máximo proveito do reality show em que o tribunal dos senadores (presidido pelo chefe da Suprema Corte) certamente vai se transformar, com esperados chiliques, trocas de insultos e revelações inesperadas — nada que se compare, claro, à mancha no vestido da estagiária Monica Lewinsky que Clinton produziu (o que foi comprovado com exame de DNA e tudo) em momento íntimo no Salão Oval. Essa parte da estratégia é arriscada, uma vez que Trump também pode se beneficiar de escorregões dos democratas.
Os artigos que embasam as denúncias de agora não diferem muito do que já apareceu em ações anteriores. “A única novidade é o conceito de um processo dinâmico, da necessidade de impedir que Trump, um presidente em primeiro mandato, venha a cometer o mesmo crime outras vezes se continuar no cargo”, diz Nicholas Allard, professor da Brooklyn Law School e ex-assessor do Comitê Judiciário do Senado. Ainda que Trump saia incólume na queda de braço do impeachment, e ele pode até cantar vitória, a história mostra que o futuro dos presidentes moídos nesse triturador é incerto: tanto o partido do republicano Nixon quanto o do democrata Clinton perderam as eleições seguintes. O ano que se aproxima será de fortes emoções.
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665