Tentando de todas as maneiras tratar a terça 6 como um dia comum, Cristina Kirchner, vice-presidente da Argentina, participou de reuniões pela manhã e cumpriu compromissos em seu gabinete no início da tarde. Aí, virou a página da agenda e incorporou a condição de ré: seguiu de carro blindado até o Senado, para o qual também foi eleita e do qual é presidente, sentou-se em uma sala com uma grande bandeira argentina ao fundo, ao lado de pequena comitiva, e remotamente, da mesma forma que os demais indiciados, marcou presença na audiência virtual aberta em que o Tribunal Federal N° 2 anunciou a sentença dos acusados considerados culpados — ela inclusive — de corrupção no que ficou conhecido como o Caso Vialidad.
Meia hora depois, veio a pena: Kirchner, a guia peronista, figura política mais poderosa do país e líder da ala dominante do Partido Justicialista, foi condenada a seis anos de prisão e impedida para sempre de se candidatar a cargo público. A reação foi imediata, na forma de uma live de quase uma hora e no usual tom dramático de um tango. “Não se trata de uma condenação baseada em leis administrativas e na Constituição nacional. Vem de um Estado paralelo e uma máfia, uma máfia judicial”, bradou. Na prática, pouca coisa muda na situação de Kirchner. Mas a sentença — a primeira do gênero para uma vice em exercício — tem potencial para abalar ainda mais o poder do peronismo, movimento que domina a política argentina, com poucos intervalos, há quase oito décadas.
A acusação que levou à condenação é velha conhecida dos brasileiros: fraude contra a administração pública e favorecimento de um empresário amigo da família. Primeiro Néstor Kirchner (1950-2010), depois Cristina, casal que ocupou a Presidência entre 2003 e 2015, teriam direcionado 51 contratos de construção de rodovias, via licitações fraudadas, para empresas ligadas a Lázaro Báez, ex-bancário que abriu uma empreiteira às vésperas de Néstor assumir a Casa Rosada. Algumas obras nunca foram concluídas e todas ficavam em Santa Cruz, o reduto político da família, hoje governado por uma irmã do patriarca, Alicia Kirchner. Entre as provas estão documentos obtidos pelo Ministério Público mostrando que o patrimônio de Báez (que está preso por envolvimento em outro esquema) cresceu 12 000% e o de sua empreiteira, 46 000%, nas gestões Kirchner.
A vice-presidente vai recorrer da sentença, um processo que deve se arrastar durante anos, e não há a menor possibilidade de que venha a ser presa — ela tem imunidade até a próxima eleição, em outubro de 2023, e fará 70 anos (na Argentina, condenados dessa idade em diante cumprem pena domiciliar) em fevereiro. Até se candidatar ela poderia, já que nada deve estar resolvido nos próximos doze meses, mas, em um arroubo de indignação, declarou que não vai disputar nenhum cargo. “Não serei candidata a nada. Me prendam”, desafiou. Desde que o julgamento começou, em 2019, ela bate na tecla da perseguição política e caça às bruxas, tendo tentado de todas as maneiras desacreditar a promotoria e os três juízes encarregados do processo. “Há três anos avisamos que a condenação estava escrita”, voltou a afirmar após a sentença, cujo anúncio levou manifestantes para a frente da casa dela e do tribunal, com cartazes proclamando “Todos somos Cristina”.
Apesar das mostras de que Kirchner ainda tem apoio e poder, sua condenação deve amargar ainda mais as relações dela com seu companheiro de chapa, o presidente Alberto Fernández — ela acha que ele fez corpo mole no seu embate com a Justiça e não se empenhou de fato para defendê-la. Na última hora, um dia antes de o tribunal se pronunciar, Fernández tentou livrar a própria barra anunciando a abertura de uma investigação sobre uma suposta misteriosa viagem ao sul do país de um grupo de empresários da mídia, promotores e juízes (os inimigos mortais da vice), entre eles Julián Ercolini, o juiz que conduziu o processo e que aparece em uma mensagem de origem não esclarecida sugerindo como esconder a inexplicada excursão. O presidente também reiterou que Kirchner é “vítima de uma perseguição absolutamente injusta” e que “todos nós, homens e mulheres de bem que amamos a democracia e o estado de direito, devemos nos colocar ao seu lado”. Fernández sabe que não pode governar sem a vice, a parte forte da coalizão Frente de Todos no poder, embora os dois mal se falem e vivam às turras — em meio a uma brutal crise econômica, com a inflação beirando os 100%.
Fernández, sim, é candidatíssimo à reeleição, mas não tem o que é preciso para unir o Partido Justicialista, hoje um saco de gatos de alas do peronismo, e nem a (bastante duvidosa, apesar da declaração em contrário) ausência de Kirchner na votação é garantia de vitória. “Sem ela, é mais provável que o partido se descole da Frente de Todos, fragmentando ainda mais a política argentina”, prevê Carolina Zaccato, pesquisadora de política externa argentina na Universidade de St. Andrews, no Reino Unido, que não vê no presidente um herdeiro da influência dominante da vice — “até porque ela mesma vai continuar no centro da cena política por um bom tempo”. Se de fato Kirchner não se candidatar em 2023 e vier a perder esse direito sem ter ungido um sucessor à altura, o peronismo pode se ver, pela primeira vez, sem um nome forte que o represente, situação inédita e perigosa para o movimento. Foi sempre sob a chancela de uma figura carismática — Juan Perón, Isabelita, Carlos Menem, os próprios Kirchner — que o Partido Justicialista atravessou décadas dando as cartas na Argentina e viabilizando viradas ideológicas que vão do populismo assistencialista a abertura de mercado e privatizações, sem perder o apoio de seus fiéis militantes.
Mesmo com condutores poderosos, a banda do peronismo vem se debilitando há algum tempo, desgastada pela derrocada da economia e pelas picuinhas entre presidente e vice — nas eleições legislativas de 2021, os peronistas perderam a maioria no Senado pela primeira vez desde 1983. Em qualquer circunstância, ninguém aposta que o fim está próximo para os devotos de Perón. “Falar sobre o enfraquecimento desse movimento político é sempre uma condição passageira”, comenta Jaqueline Mariela Behrend, professora de política da Universidade Nacional de San Martín. “Neste momento, seu maior dilema interno está no fato de que a maioria do peronismo se uniu em torno de uma frente eleitoral que ganhou a eleição mas faz um péssimo governo”, resume Gabriela Rodríguez Rial, professora de ciências sociais da Universidade de Buenos Aires. Figura de proa nas idas e vindas da turbulenta política da América Latina — onde Pedro Castillo, presidente do Peru, foi destituído e preso na quarta-feira 7 (o sexto seguido a receber ordem de prisão), depois de tentar dissolver o Parlamento e antecipar eleições —, Cristina Kirchner, a vice condenada na Justiça, segue operante e poderosa. Resta ver por quanto tempo.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819