Pisando com cuidado em um terreno minado de escândalos, rivalidades internas, projetos abilolados e torpedeado por graves problemas econômicos, Rishi Sunak assumiu o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido — o terceiro desde setembro, o quarto em três anos, o quinto desde o plebiscito do Brexit — com o mais pragmático dos discursos. “Colocarei a estabilidade e a confiança na economia no centro da agenda do governo. Isso quer dizer que decisões difíceis terão de ser tomadas”, disse. Em seguida, confirmou no crucial Ministério das Finanças o aliado Jeremy Hunt — o mesmo que Liz Truss, a breve, chamou para apagar o incêndio de seu plano mirabolante de cortar impostos e gastar a rodo no país à beira da recessão.
O reino em convulsão que Sunak pega para consertar não está sozinho em sua aflição. Com inflação acelerada, uma crise energética sem precedentes, produção industrial em declínio e pouca margem de manobra para inverter o desastre, a Europa é hoje um continente em transe onde, pela primeira vez em gerações, fazer o salário chegar ao fim do mês voltou à pauta das preocupações. As causas do estrago são conhecidas e afetam mais ou menos o mundo inteiro. Depois de dois anos de paralisia em razão da pandemia, a retomada, que se supunha instantânea e pujante, acabou atravancada por problemas de logística e abastecimento. O custo de vida disparou, a dívida pública explodiu e a desigualdade se instalou. A invasão da Ucrânia, em fevereiro, acirrou problemas em toda parte, mas nenhum ponto do planeta foi mais afetado pelos transtornos que ela causou no fornecimento de energia e alimentos do que os países europeus.
A inflação nos dezenove países que têm o euro como moeda bate recorde, em 9,9% no ano, e atingiu os dois dígitos em duas das quatro economias mais fortes. A exceção é a França, com 5,6%, mas se trata do aumento de preços mais rápido ali desde meados da década de 80, agravado por altas localizadas de enorme repercussão. As padarias alertam para o fato de que, devido à escalada do preço do trigo (afetado pela guerra entre Rússia e Ucrânia, os maiores produtores), a baguete vai ficar cada vez mais cara. O desabastecimento de petróleo russo está provocando filas intermináveis nos postos. Indignados e exigindo melhores salários, sindicatos, estudantes, funcionários públicos e outros setores promoveram marchas em Paris — dando vazão ao impulso que os franceses carregam na alma de partir para a mobilização popular em momentos de comoção social. O presidente Emmanuel Macron, reeleito em abril sem maioria na Assembleia Nacional, apelou a um decreto para aprovar o Orçamento do próximo ano, centrado em uma projeção de crescimento de 1%, abaixo dos 2,7% previstos para 2022.
As amostras da crise se espalham. A produção industrial na Zona do Euro caiu 2,3% em julho, a queda mais pronunciada em dois anos. As indústrias de metais, papel e fertilizantes, altamente dependentes de energia, cortaram a fabricação e metade do suprimento de alumínio e zinco já está comprometida. Na Alemanha, motor do continente, o custo energético leva fábricas a diminuir turnos e dispensar funcionários. Pela primeira vez na história, a França, que recebe parte de seu suprimento de gás da Noruega, enviou uma parcela de seu combustível aos depósitos alemães. “Não fosse a solidariedade europeia e um mercado integrado e unido, nossos problemas seriam mais graves”, pontuou Macron, em recado para os eurocéticos de plantão. Sentindo na carne o peso do custo de vida, pilotos e comissários alemães entraram em greve por melhores salários, levando o caos aos aeroportos. O descontentamento se repete na Itália, onde a primeira-ministra de extrema-direita Giorgia Meloni tomou posse com inflação em alta, dívida pública equivalente a 150% do PIB e o país no estágio inicial de uma recessão.
A agonia não dá sinais de abrandar — pelo contrário. Segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional, as economias avançadas europeias crescerão apenas 0,6% no próximo ano. No sombrio 2023, o FMI calcula que a produção e a renda desses países serão quase meio trilhão de euros menores do que se previa antes da guerra na Ucrânia. “A interrupção total do fluxo de gás russo, aliada ao inverno gelado, pode resultar em escassez, racionamento e um novo surto inflacionário”, alerta Alfred Kammer, diretor do FMI para a Europa. Antecipando-se aos problemas, os países europeus já reduziram a iluminação de monumentos e de luminosos de publicidade, vão cortar drasticamente as luzes da decoração de Natal e pedem à população que use menos água quente, menos calefação — até menos sauna, no caso da Finlândia.
É nesse cenário que Sunak chega ao poder — pouco conhecido (leia abaixo), conservador da linha pragmática, que precisará de muito jogo de cintura para aprovar medidas duras no Parlamento dividido e indisciplinado. O programa de subsídios a consumidores e empresas para abater o custo de energia, que no projeto de Liz Truss se estenderia por dois anos, agora vai até abril — sendo que em março a previsão é de que a conta quase dobre. O primeiro-ministro garantiu que os benefícios e as aposentadorias serão ajustados de acordo com a inflação, mas, com o déficit público entre 30 bilhões e 40 bilhões de libras, o Banco da Inglaterra elevando os juros e o fantasma da recessão no ar, teme-se que mude de ideia. Preocupados com o bolso, trabalhadores nos portos, correios, escolas, universidades e hospitais ameaçam greves. Sunak com certeza tem uma batata quente — com ou sem filé de peixe empanado — nas mãos.
A hora e a vez de Rishi Richie
A escolha de Rishi Sunak para liderar o Partido Conservador e assumir o cargo de primeiro-ministro se encaixa com perfeição no festival de fatos inusitados que assola o Reino Unido. Aos 42 anos, ele é o mais jovem chefe de governo em dois séculos. Filho de indianos que emigraram para a África antes de aportar em Londres, surge como o primeiro não branco no posto em toda a história. Egresso do mercado financeiro e casado com a filha de um bilionário indiano, sua fortuna é o dobro da do rei Charles e da rainha Camilla juntos. Adepto dos ternos justos feitos sob medida, camisa branca com a manga dobrada até o cotovelo, sapatos de grife e topete impecável, o primeiro-ministro só tem de esperado o apelido: Rishi Richie, trocadilho com Richie Rich, o Riquinho das histórias em quadrinho.
Praticante do hinduísmo, formado em Oxford e Stanford, Sunak é um novato entre seus pares. Eleito pela primeira vez em 2015, logo entrou para a banda do Brexit, aprovado em um plebiscito no ano seguinte. Inserido no lado certo da força, atraiu a atenção de Boris Johnson — em 2020 assumiu o Ministério das Finanças na condição de príncipe herdeiro, ajudado pela imagem de político boa-pinta. Ganhou popularidade na pandemia, ao abrir os cofres para garantir salários e empréstimos a empresas, mas perdeu pontos quando a realidade se impôs e começou a apertar o cinto. Para piorar, também foi pego em uma festinha (embora só beba Coca-Cola) em plena quarentena e sentiu o baque da revelação de que sua mulher, Akshata Murty, com quem tem duas filhas, mantinha seu domicílio fiscal na Índia para evitar pagar impostos (ela se corrigiu). Ungido agora salvador da pátria britânica, ele promete botar ordem na casa até as eleições, em janeiro de 2025. Isso, se chegar até lá.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813