Para gerações de britânicos, só houve uma rainha: Elizabeth II, setenta anos ininterruptos no trono — a mais longeva monarca da Inglaterra —, com uma trajetória de alguns erros e muitos acertos na sobrevida que soube dar a um título amplamente obsoleto. Para se ter uma ideia do alcance de sua influência, 80% das pessoas que hoje habitam o planeta sequer haviam nascido quando ela se tornou rainha, em 1953. Vivendo no fausto de seus palácios e de seus privilégios, Elizabeth morreu, aos 96 anos, no auge da popularidade, personificando um Reino Unido altivo e relevante — uma imagem muito distante do país de hoje, mas que ainda acendia nos britânicos o senso de unidade e orgulho que os ajudou a superar a perda da posição de donos do mundo. Com Elizabeth, morre uma era de dignidade e respeito à coroa que o herdeiro, Charles, agora Charles III, de 73 anos, dificilmente conseguirá reeditar.
Elizabeth estava mal de saúde havia meses. Impensável para uma monarca que fazia questão de seguir à risca todos os rituais, ela faltou a diversos compromissos desde que passou alguns dias hospitalizada, há quase um ano, em um episódio de “exaustão”. Dois dias antes de morrer, fez questão de cumprir mais um: de bengala, frágil mas sorridente, recebeu Boris Johnson, o primeiro-ministro que ia embora, e Liz Truss, sua sucessora, em um salão do Castelo de Balmoral, na Escócia, onde, como fez ao longo de todo o reinado, passava os três meses de verão. “Ela era o próprio espírito britânico e esse espírito vai perdurar”, disse Truss em sua mensagem.
Segundo um cronograma minuciosamente arquitetado e ensaiado, seu corpo será velado primeiramente no Castelo de Edimburgo e, de lá, percorrerá no trem real os 600 quilômetros até Londres. O trajeto noturno será acompanhado pela população lançando flores nos vagões e nos trilhos. O caixão de 250 quilos com acabamento em chumbo vai ser velado em Westminster até o domingo 18 e de lá o cortejo fúnebre seguirá para o Castelo de Windsor, onde a rainha receberá os ritos finais na cripta real da St. George’s Chapel. A essa altura, familiares e dignitários presentes estarão se inclinando perante o novo rei, Charles III, acompanhado da nova rainha consorte, Camilla.
Elizabeth foi rainha por acaso — seu pai, George VI, era o segundo filho e só chegou ao trono porque o irmão mais velho, Edward VII, abdicou para se casar com a americana Wallis Simpson, no primeiro escândalo de grandes proporções da família nos tempos modernos. Princesa aos 10 anos, estudou com professores universitários e nunca frequentou escola nem universidade. Pouco se sabe sobre sua vida escolar, mas sobram dados sobre sua paixão por cavalos de raça, que criava para competição, e cães corgi — teve uns trinta. Aos 90 anos, ainda cavalgava nos castelos de Windsor e Balmoral. Nesse último, também desfrutou enquanto pode outro de seus prazeres: a caça.
Como não podia deixar de ser para quem passou setenta anos no trono, Elizabeth atravessou momentos difíceis — todos eles, diga-se, desencadeados por sua família. Sua coroação, em 1953, foi o primeiro evento transmitido ao vivo pela televisão, abrindo um novo tempo de encanto e admiração pela solene presença da realeza na sala de estar dos plebeus, porém, ao mesmo tempo, dando impulso à curiosidade geral pela vida dentro do palácio. Como figura pública, a jovem rainha, que assumiu o trono aos 25 anos cercada de desconfiança, impôs-se pela determinação, rapidez de raciocínio e consciência de sua posição. De vestidos discretos, mas coloridos, chapéu e bolsa (vazia) pendurada no braço, passou por governos, guerras, crises e a implosão de seu império sem perder a majestade.
Seu discurso anual de Natal, televisionado para a nação, foi se infiltrando na alma britânica como uma mensagem de positividade, firmeza e confiança no futuro. No auge das adversidades, a rainha, inabalável, iria assegurar a integridade do tecido nacional. Para um reino que chegou a dominar metade do planeta e, em pouco tempo, perdeu tudo e se tornou um país como tantos outros, a postura de Elizabeth funcionou como uma espécie de tábua de salvação do orgulho britânico, um fator de união que perdurou até o fim dos seus dias.
Mesmo tendo um papel simbólico nos rumos da nação, Elizabeth desempenhou a função de âncora da nau britânica, a figura na qual se sustentava o prestígio internacional do país. No auge da pandemia, ela apareceu em rede nacional e, em uma das poucas falas não programadas de sua monarquia, imbuiu-se de sua posição de garantidora do espírito da nação: “Nos anos que virão, todos terão orgulho da forma como respondemos a este desafio. E os que virão depois de nós dirão que os britânicos desta geração foram fortes como sempre”.
Os únicos abalos significativos nessa fortaleza vieram da vida pessoal de filhos e netos e resultaram, em parte, da tinta de modernidade que Elizabeth imprimiu na família real a partir dos anos 1970. Por um lado, foi uma jogada bem-sucedida: a realeza andava apagada e precisava do sopro de renovação. Por outro, abriu caminho para a divulgação de conflitos domésticos — como as escapadas do marido, o príncipe Philip, e os excessos da irmã, Margaret — que até então ficavam mais ou menos restritos às muitas paredes do palácio, graças a um acordo não escrito com a mídia.
Nos anos 1990, Charles e a primeira mulher, Diana, se separaram e os alicerces do mundo elizabetano tremeram com o impacto de revelações escandalosas de parte a parte. A rainha procurou, na medida do possível, se preservar dos respingos de falas como “Éramos três naquele casamento” (Diana) e “Queria ser seu tampão” (Charles) — ambas referências à amante real, Camilla, uma assombração a rondar o “annus horribilis” mencionado na mensagem de Natal de 1992. Diana morreu em um acidente de carro em Paris, aos 36 anos, no apogeu de sua fama de princesa do povo, e a impassibilidade de Elizabeth diante da tragédia (condizente, aliás, com o que sempre considerou uma obrigação real) fez sua popularidade desabar a seu ponto mais baixo.
A rainha, como sempre, se refez. Viajou de Balmoral a Londres, percorreu as montanhas de flores que a população acumulou nos muros em homenagem a Diana e pronunciou um discurso excepcionalmente emocional (para os padrões da realeza) em que definiu Diana, com quem sempre teve uma relação fria, como “um ser humano excepcional”. Isso feito, esperou o tempo passar e, sem mudar um fio do cabelo armado a laquê, retomou seu lugar no coração dos súditos.
Em 2017, celebrou setenta anos de casamento com o príncipe Philip, parceiro de todas as horas que, sempre dois passos atrás dela, remendou estragos no ambiente doméstico com firmeza e língua ferina. Philip morreu no ano passado, aos 99 anos, e a rainha, de novo, se recuperou — passado o luto, embarcou em intensa agenda de viagens e recepções oficiais. Ao contrário do resto da família, Elizabeth se manteve, no decorrer da longa existência, impermeável a qualquer resquício de escândalo, emitindo uma régua moral que ajudou a moldar a admiração dos súditos.
Nos últimos anos, outra crise, essa desencadeada pelo neto Harry e sua mulher americana, Meghan, que saíram do círculo dos royals chutando a porta, deixou evidente o alcance de sua força: sem dizer palavra, fez cair sobre o casal rebelde toda a responsabilidade pelo drama familiar. Harry e Meghan, que se mudaram para a Califórnia, por coincidência estavam na Europa no dia de sua morte e devem participar das homenagens.
Tendo a rainha partido, resta agora a Charles III a dura missão de manter o brilho da última monarquia clássica do mundo. “A morte de minha amada mãe, Sua Majestade a rainha, é um momento de grande tristeza para mim e para meus familiares”, disse em seu primeiro pronunciamento — de agora até a homenagem final, todos os seus passos seguirão um ritual milimetricamente definido. Aos 73 anos, sem carisma e dispondo de uma ínfima parcela do desfrutado pela mãe, o novo soberano começa seu reinado sobre bases nada sólidas. Elizabeth soube ser maior do que a sua pessoa, infiltrando-se nos sentimentos da população como uma figura que pairava acima do bem e do mal. A imagem de Charles sentado ao lado de sua coroa, na abertura da sessão inaugural do Parlamento neste ano — sua primeira sutil adaptação ao papel de rei —, passou longe da de um soberano à altura da antecessora.
Depois de se preparar a vida inteira para herdar o trono, é possível que surpreenda. Se não conseguir, as esperanças de manutenção do prestígio da realeza britânica se depositam em William e Kate, um casal simpático, moderno e até agora impermeável aos escândalos dos Windsor. Venha quem vier, uma certeza permeia o reino: nunca mais haverá rainha como Elizabeth II, filha e mãe de seu tempo, de nobre legado.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806