Todo jovem colado às novidades do terceiro milênio sonha em trabalhar no Vale do Silício e arredores, a região da Califórnia onde estão instalados os gigantes high-tech — Google, Facebook, Twitter, Apple, Uber, Amazon etc. —, dispostos a pagar fortunas para atrair novos talentos. Emprego na mão, o candidato a milionário sai em busca de um lugar para morar, de preferência em São Francisco, cidade ligeiramente afastada do vale em si, mas transbordante de charme e diversidade com seu passado hippie, ladeiras e bondes, a ponte Golden Gate e até o soturno presídio na Ilha de Alcatraz. Só há um probleminha: não existe moradia disponível. A alta demanda, aliada a rigorosíssimas regras de zoneamento, empurrou o preço dos imóveis para as alturas. Lá, um apartamento de dois quartos chega a 750 000 dólares, mais que o triplo do padrão americano. O aluguel médio, de 3 631 dólares, encosta no topo do ranking, o de Hong Kong (3 685 dólares), e o custo de construção é o mais elevado dos Estados Unidos. Resumindo: morar em São Francisco é 25% mais dispendioso que na caríssima Nova York.
A pujança do Vale do Silício contribuiu para agravar um problema que já dura décadas. O salário líquido médio do morador de São Francisco é de pouco mais de 6 500 dólares (cerca de 30 000 reais), o maior do planeta. A cidade de mais de 800 000 habitantes ostenta a maior densidade de bilionários do mundo — aproximadamente 1 em cada 11 600 habitantes, segundo levantamento de 2019. Com clientes tão abonados, a procura por imóveis explodiu nas últimas décadas, uma demanda que o setor de construção civil, amarrado por leis restritivas, não conseguiu acompanhar. Quem ganha bem buscou abrigo nas cidades vizinhas, onde os preços são mais acessíveis — as empresas fretam ônibus para levar e trazer funcionários todos os dias. Quem ganha pouco foi para a rua: é comum encontrar mendigos sob marquises na Market Street, aglomerado de escritórios de startups e grandes companhias de tecnologia.
A escassez de moradias atinge toda a Califórnia, onde a população de sem-teto passa de 150 000 — sem contar os milhares que vivem em seus carros. Essa expressão de desigualdade é motivo de muito embaraço para os californianos politicamente corretos, visto que seu estado, se fosse um país, seria a quinta maior economia do globo. A raiz do problema está em leis aprovadas nos anos 1970 que impedem novas construções ou a edificação de prédios em vastas áreas, em nome da proteção ambiental. A regra que mais emperra a oferta é a que permite que qualquer morador entre na Justiça contra projetos imobiliários na sua vizinhança, paralisando a obra por anos a fio.
Em São Francisco, um referendo aprovou a cobrança de um imposto de 0,5% sobre o faturamento das grandes da tecnologia, destinado a um programa de casas acessíveis, que deve arrecadar 300 milhões de dólares por ano. Cientes da gravidade do problema e de seu papel nele, as próprias empresas compraram terrenos e anunciaram planos de investir em moradias básicas. A Apple se comprometeu a aplicar 2,5 bilhões de dólares, Facebook e Google prometem 1 bilhão cada um. O governo estadual também reservou 1 bilhão de dólares para amenizar o problema, além de impor limites ao aumento de aluguéis e reforçar direitos dos inquilinos. “Vamos falar sem rodeios: é uma desgraça que o estado mais rico da nação mais rica do mundo fracasse tanto em dar atendimento adequado a tantas pessoas”, bradou no mês passado o governador Gavin Newsom — por sinal, ex-prefeito de São Francisco. Não demora, o MTST abre uma filial californiana.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677