Se a definição do tão falado jeitinho daqui é torcer situações de forma que elas se revertam em benefício próprio, George Santos, filho de brasileiros que emigraram para os Estados Unidos nos anos 1980, carrega toneladas desse componente em seu DNA. Eleito deputado republicano na muito democrata cidade de Nova York, Santos está enrolado em um escândalo sem precedentes nos anais do Congresso: ele simplesmente mentiu de cabo a rabo no currículo que apresentou tanto ao partido quanto aos eleitores. A farsa não afeta em nada sua eleição, em novembro passado. A lei americana só impede o exercício do cargo para quem falsifica idade, endereço e nacionalidade, dados que o candidato-Pinóquio teve o cuidado de declarar corretamente. Sendo assim, George Santos já circula, todo pimpão, pelos corredores da Câmara dos Deputados em Washington — mesmo não sendo nada do que dizia ser.
Santos apresentou-se na campanha como a encarnação do sonho americano. A se crer no seu relato, a mãe, Fátima, emigrante pobre, fez carreira na área financeira e investiu em imóveis — treze ao todo. Ele estudou na escola particular Horace Mann, mas no final a família não pode mais pagar e seu diploma equivale ao supletivo brasileiro. Formou-se em economia no renomado Baruch College e trabalhou em Wall Street, primeiro no Citigroup, depois no J.P. Morgan. Fundou sua própria empresa, a Devolder Organization, que chegou a administrar ativos de 80 milhões de dólares. Sonhava integrar duas comissões da Câmara: a que cuida de finanças, por sua vitoriosa atuação na área, e a que trata de assuntos multiculturais — afinal, tem ascendência angolana por parte de pai, judaico-ucraniana por parte de mãe, e é gay assumido. “Uma bela história de vida”, elogiou a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), que o encontrou em novembro em Nova York, para onde viajou depois de haver apontado uma arma para um petista em São Paulo.
Pois bem: uma investigação puxada pelo The New York Times e seguida por outros órgãos de imprensa mostrou que não há imóveis em nome dos Santos em Nova York nem registro da passagem de George Santos pela Horace Mann, pelo Baruch College, pelo Citigroup ou pelo J.P. Morgan. Sua empresa foi dissolvida no ano passado, por falha em apresentar balanço. Entidades judaicas desconhecem a saga da família de Fátima — que, por sinal, estaria trabalhando nas Torres Gêmeas no 11 de setembro de 2001 e 1) morreu lá e 2) escapou com vida, mas morreu de sequelas anos depois (ele varia entre as duas versões). Nem a ONG para acolher animais abandonados que diz haver fundado aparece entre as instituições de caridade listadas em Nova York. Encostado na parede, Santos admitiu que mentiu um pouquinho. “Meu erro foi querer embelezar meu currículo”, justificou.
A certa altura, Fátima, que aparece como faxineira, cozinheira e cuidadora de idosos em passagens nas redes sociais, trocou Nova York por Niterói e recebeu a visita do filho. Sabe-se disso porque ele, então com 19 anos (e teoricamente cursando o Baruch College), foi alvo de um processo, a que VEJA teve acesso, pelo crime de estelionato. Em 2008, o jovem Santos comprou roupas e sapatos com cheques roubados de um idoso para quem a mãe trabalhava. O dono da loja não sossegou até localizá-lo e levar o caso à polícia. Santos confessou, prometeu reembolsá-lo — e sumiu. Suspenso em 2013, o processo será reaberto agora que se conhece seu paradeiro.
Parte das invenções e inconsistências de Santos constava de um dossiê do Comitê de Campanha do Partido Democrata, que o classificou de “figura suspeita” — a começar pelo salto de 5 000 para 11 milhões de dólares entre os bens declarados na sua primeira investida política, em 2020, e agora. Mesmo sabendo disso, o partido não se mexeu e perdeu uma vaga importante na Câmara, onde os republicanos têm maioria de nove votos. Ainda que o caso chegue à comissão de ética da Casa, punições para esse tipo de infração são raras. A Receita Federal, o estado de Nova York e o condado de Nassau, pelo qual foi eleito, estão investigando as declarações de renda e as doações e despesas de campanha de Santos. Ritchie Torres, deputado democrata por Nova York, anunciou que, quando a Câmara reabrir os trabalhos (travados até a quinta-feira 5 por uma queda de braço pela presidência da Casa), vai apresentar um projeto de lei equiparando falsidades em currículos de postulantes a cargos públicos a perjúrio. Nome da lei: Stop Another Non-Truthful Office Seeker (“Impedir outra candidatura baseada em inverdades”). Resumidamente, Santos.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823