Jovem, idealista e extremamente católico, dom Sebastião, o Desejado, reinou em Portugal, na segunda metade do século XVI, com forte apoio da população, que depositava nele a esperança de renovação e de um futuro promissor para o país. Imbuído de seu destino heroico, o rei comandou em pessoa uma expedição militar para combater os mouros no norte da África — e morreu na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 4 de agosto de 1578, aos 24 anos, desencadeando uma crise sucessória na corte e na Península Ibérica. Avistado pela última vez embrenhando-se a cavalo no meio das tropas inimigas, dom Sebastião sumiu na batalha e virou lenda. Seus restos seriam reconhecidos no dia seguinte por nobres que o acompanhavam e confirmaram a morte, mas há quem duvide até hoje da veracidade desses fatos — dúvida plantada em Lisboa através de rumores de que o rei estava vivo e voltaria para livrar o reino dos oportunistas. No recém-lançado Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião (Tinta da China Brasil), o historiador português André Belo destrincha o famoso episódio que, sob o olhar de hoje, tem todos os ingredientes de uma monumental fake news histórica.
Os restos de dom Sebastião, transmutado em O Encoberto, foram resgatados quatro anos depois de sua morte e repousam no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, mas persiste a crença de que o mausoléu faz parte de uma teia de invencionices que abrange os testemunhos e documentos oficiais. “Basta haver notícia para haver falsas notícias”, ressalta Belo. “Elas sempre existiram na história humana.” O desaparecimento do rei abriu caminho para a formação da União Ibérica, que reuniu Portugal e Espanha sob o domínio da Casa dos Habsburgos, situação que perdurou até 1640, quando a família real portuguesa retomou o trono. Descontentes com o predomínio espanhol na nova configuração, opositores portugueses foram os primeiros a incentivar o chamado sebastianismo, que depois foi sendo reciclado e aplicado a diferentes personagens e em momentos difíceis. Dom João IV, que devolveu o trono português à Casa de Bragança, era considerado uma espécie de Sebastião redivivo pelo padre Antônio Vieira, figura de grande influência na corte. Os ataques de Napoleão Bonaparte, entre 1808 e 1811, quando dom João VI e a família real fugiram para o Brasil, fizeram renascer o mito heroico na resistência dos portugueses aos franceses. “Simplificando muito, foi em momentos de crise que se recorreu ao sebastianismo”, resumiu Belo a VEJA.
O sebastianismo é, na análise do sociólogo português, uma forma de messianismo que assumiu várias “encarnações” desde que foi criado e foi seguidamente usado para impulsionar ideias e personagens populistas. O livro reproduz em detalhes um episódio ocorrido em 1598, quando o calabrês Marco Tulio Catizone surgiu em Veneza dizendo ser o rei português morto (embora sequer falasse o idioma) e recorrendo a textos considerados proféticos. O suposto retorno foi divulgado em panfletos e livros publicados pelos expatriados envolvidos na fabricação do enredo. Exposto como impostor, Catizone foi preso em 1603 e condenado à morte — viria a ser executado na Espanha, em 7 de agosto daquele ano. “Detive-me sobre este caso porque considero que foi ele que criou as principais bases para a persistência do sebastianismo posteriormente”, explica Belo.
No século XIX, chegou-se a proclamar o fim do fenômeno. Mas intelectuais e políticos portugueses trataram de desenterrá-lo mais uma vez, dando-lhe uma nova roupagem. A mitologia sebastianista foi alimentada, nos tempos da ditadura de António Salazar (1889-1970), para exaltar nacionalismos e assegurar um confortável conformismo social. No Brasil, o adepto mais conhecido da lenda do retorno do rei foi Antônio Conselheiro, que em suas pregações aos seguidores na revolta de Canudos (1896-1897), no sertão baiano, afirmava que dom Sebastião voltaria para acabar com a monarquia no Brasil. Aos poucos, porém, o mito foi perdendo o brilho. “Na minha interpretação, o sebastianismo não tem de modo algum a importância que já teve, ao menos na parte política”, sentencia Belo. Na ausência de rigor científico e documentação histórica, nenhum mito, vivo ou morto, consegue parar de pé.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867