Poucos destinos têm sido tão efêmeros quanto chegar a primeiro-ministro da Itália. Desde a queda de Silvio Berlusconi, o populista que, entre idas, vindas e escândalos de corrupção, ficou quase uma década à frente do governo, nenhum sucessor conseguiu completar três anos no poder — consequência, entre outros fatores, da pulverização do sistema eleitoral entre mais de 100 partidos. A alta rotatividade, porém, não diminuiu em nada a sede dos líderes partidários pelo comando do país. Tendo agora chegado ao fim a curta experiência do apolítico Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu que aglutinou as mais variadas legendas em torno da missão de pôr a Itália nos eixos e, ao fim de um ano e meio, jogou a toalha, dirigentes fazem fila pela chance de se dar bem nas eleições convocadas para 25 de setembro. Com uma novidade de deixar meio mundo de cabelo em pé: a mais cotada para a vitória é a deputada neofascista Giorgia Meloni.
Bradando o exato slogan de Mussolini — Deus, Pátria e Família —, Meloni, à frente do Irmãos da Itália, legenda que nasceu minúscula há uma década, pode conquistar até 25% dos votos na próxima eleição — um porcentual, aliás, alinhado com as atuais chances eleitorais de boa parte da extrema direita europeia. Caso consiga costurar uma coligação com os aliados naturais, Força Itália, de Berlusconi, e La Liga, do também ultradireitista Matteo Salvini, ela deve alcançar 40% das intenções de voto. A mola propulsora da popularidade de Meloni é a habilidade em usar as redes sociais para culpar os imigrantes pelos males da Itália (esta, sua principal bandeira) e falar mal de aborto e do casamento gay. “O Irmãos da Itália claramente tem suas raízes no Movimento Social Italiano, fundado por seguidores de Mussolini após a II Guerra”, diz o analista político Valerio Bruno, do Centro de Análise da Direita Radical, no Reino Unido.
Na eleição passada, o Irmãos da Itália foi o único partido no Parlamento a se recusar a fazer parte da coalizão montada por Draghi e agora Meloni se beneficia da insatisfação da população com mais um governo que derreteu. Isso apesar — ou por causa — da impressionante coleção de atrocidades pronunciadas pela líder neofascista ao longo da carreira. Ela já declarou que não quer “ter filho gay”, chamou um declarado antissemita de “herói” e não poupa adjetivos na defesa do que intitula “civilização italiana”. “Sim para a proteção das fronteiras! Não à imigração em massa! Sim à nossa civilização! Não àqueles que querem destruí-la!”, bradou em um comício.
Embora tenha até certo ponto moderado o discurso para atrair mais matizes do conservadorismo, a deputada segue mobilizando multidões com falas do tipo “Sou mulher, mãe, italiana e cristã, e ninguém vai tirar isso de mim”. Seu crescimento, vale ressaltar, tem gerado um importante debate sobre a história do país. “O apelo do extremismo encontra campo fértil na Itália porque nunca confrontamos o passado fascista, como a Alemanha fez com o nazismo”, diz Piero Garofalo, professor de estudos italianos na Universidade de New Hampshire, nos Estados Unidos. Derrotados na II Guerra, os fascistas italianos ganharam um vasto perdão à la Lei da Anistia brasileira. “Tudo foi varrido para debaixo do tapete, viabilizando a rearticulação das ideias neofascistas”, afirma Garofalo. Meloni, como Mussolini, prega o uso de todas as armas para garantir a unidade nacional. Tal qual il duce, apregoa o perigo do declínio da população branca, a ser enfrentado com incentivo à natalidade e fim da imigração. Também repisa a tecla fascista da Itália sendo herdeira do legado e da tradição da identidade europeia.
Depois de passar décadas blindada contra os preceitos nazistas e fascistas, que desembocaram na tragédia da Grande Guerra, a Europa vê agora a extrema direita avançar, lenta e continuamente, na composição do Parlamento em vários países. Antes de Meloni chegar aonde chegou na Itália, a francesa Marine Le Pen posou na escadaria da Assembleia Nacional com os 89 deputados de seu partido, o Reagrupamento Nacional — arrebatando cerca de 20% dos votos, aumentando em dez vezes a bancada anterior de oito cadeiras. Com 17% dos votos, e crescendo, o espanhol Vox é hoje a terceira força política do país. Ascensão semelhante das legendas radicais vem sendo observada também na Áustria e na Holanda. Marcada pelas ondas de imigração, pelo impacto da pandemia, pela inflação e pela ameaça de faltar energia, a política europeia, neste momento, caminha para trás, com a Itália puxando firme o bloco do retrocesso.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802