Cansados de guerrear com a política esfacelada entre caciques inoperantes e com a economia em frangalhos após anos de mau gerenciamento, os argentinos resolveram deixar aflorar sua alma dramática e romper com todos os padrões: com 55% dos votos, um recorde em eleições presidenciais, instalaram na Casa Rosada o economista Javier Milei, com sua cabeleira revolta, opiniões excêntricas, gestos teatrais e projetos grandiosos para tirar a Argentina do buraco. No balaio de ideias disseminadas em campanha pelo político novato, que ficou conhecido defendendo uma cartilha ultraliberal — ou “anarcocapitalista”, como prefere — em programas de TV e rádio, coube de tudo um pouco: dolarizar a moeda, “dinamitar” o Banco Central, privatização radical da educação e da saúde, recuo na legalização do aborto, alerta máximo contra o “marxismo cultural” e distância dos “comunistas”, aí incluído o presidente Lula. Uma vez eleito, amenizou o tom e parece estar se esforçando para reconstruir pontes. Vizinhos e opositores, desconfiados, estão pagando para ver.
Em um aceno amistoso para quem temia que o circo pegasse fogo imediatamente, Milei pôs à frente do Ministério da Economia o experiente Luis Caputo, ex-ministro do governo de Mauricio Macri — no qual também foi, ironicamente, presidente do Banco Central, aquele mesmo que teria agora de dinamitar. Nas relações externas, o novo mandatário deixou de dizer que vai romper relações com a China “em favor do lado civilizado da vida” e mandou carta a Lula, a quem mais de uma vez insultou, convidando-o para a posse (ele não foi). Ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, vista como uma das figuras mais influentes do novo governo, teve um encontro em Brasília com o chanceler brasileiro Mauro Vieira antes mesmo de assumir o cargo. Em outro gesto de paz, Milei manteve no posto o embaixador Daniel Scioli, uma forma de deixar abertos os canais de comunicação entre os dois países. Scioli é peronista de raiz e sua permanência como representante de Milei no Brasil retrata outro tento marcado pelo cabeludo radical: impor uma derrota histórica ao movimento que mandou na Argentina por meio século.
Publicado em VEJA de 22 de dezembro de 2023, edição nº 2873