No longa Minari, indicado a melhor filme no Oscar de 2021, uma família de sul-coreanos que se mudou para os Estados Unidos tenta sobreviver aos desafios de pôr de pé uma fazenda no Arkansas. Assim como os personagens da obra semiautobiográfica do diretor Lee Isaac Chung, milhões de orientais deixaram seu país na Ásia durante a grande onda imigratória que teve início na década de 60. Boa parte encontrou resistência e preconceito, um tanto pela predisposição da sociedade de rejeitar o diferente, outro tanto pelo sentimento de inimizade remanescente da atuação do Japão ao lado da Alemanha na II Guerra Mundial — uma situação que permanece latente no país. Segundo o último censo, 21 milhões de americanos são descendentes de asiáticos, e a eles se somam 14 milhões de imigrantes, uma multidão que se viu no olho do discurso de ódio do governo Donald Trump sobretudo a partir da disseminação do novo coronavírus, o “vírus chinês” alardeado pelo ex-presidente.
Um bárbaro massacre em Atlanta, no estado da Geórgia, na terça-feira 16, no qual a maioria das oito vítimas fatais era oriental, chamou a atenção para mais essa variante do racismo nos Estados Unidos, não tão visível quanto a que atinge os negros, mas igualmente cruel. Circulando pelo “quarteirão vermelho” de Atlanta, ponto de drogas e prostituição, Robert Aaron Long, um jovem branco de 21 anos, entrou em três casas de massagem e atirou a esmo. Entre os mortos estavam duas mulheres de ascendência chinesa e quatro sul-coreanas. Long se disse “viciado em sexo” e atribuiu a matança ao desejo de acabar com a “tentação”. “Mas a escolha dos alvos é consequência da hipersexualização da mulher oriental. A indústria cinematográfica divulga o estereótipo de que elas usam jogos sexuais para levar os homens à ruína”, diz Ji-Yeon Yuh, professora de história da Universidade Northwestern.
Diante da justificativa do atirador, os investigadores descartaram crime racial — uma atitude que, segundo lideranças asiáticas, reforça a sensação de abandono diante de um problema que não para de crescer. De acordo com dados do Centro de Estudos do Extremismo da Universidade Estadual da Califórnia, em 2020 os crimes de ódio contra orientais em dezesseis das maiores cidades americanas aumentaram 150% em relação ao ano anterior. Só entre 19 de março de 2020 e 28 de fevereiro de 2021 foram registrados 3 795 relatos de incidentes contra asiáticos, que variam de comentários racistas a ataques violentos — 42,2% deles dirigidos a pessoas de origem chinesa, os alvos preferenciais da cruzada deslanchada no governo Trump e que continua a repercutir.
O acirramento dessa onda de xenofobia coincide com o início da pandemia de Covid-19, que teve seu primeiro epicentro em Wuhan, na China. Pesquisa do instituto americano Pew Research mostra que, em julho passado, 73% dos americanos tinham uma visão negativa dos chineses e 51% culpavam a China pela pandemia, ecoando tuítes e declarações de Trump. Antes do vírus, o ex-presidente já havia eleito Pequim como o maior inimigo econômico dos Estados Unidos, impondo impostos e barreiras à entrada de produtos chineses e atribuindo intenções de espionagem a gigantes da tecnologia, como a empresa Huawei e o aplicativo TikTok. Preconceito racial, sobretudo o que recai sobre os negros, é a manifestação mais estridente de uma cultura de ódio que, nos Estados Unidos, se traduz em violência policial, milícias, abusos contra imigrantes e, em última instância, desata a insanidade dos massacres com armas de fogo pelos quais o país tragicamente se destaca. Uma semana depois da matança de Atlanta, outro jovem de 21 anos, Ahmad Al Aliwi Alissa, entrou em um supermercado em Boulder, no Colorado, e disparou, matando dez pessoas. Para minorias sujeitas a preconceito, como a comunidade asiática, atos desse calibre dissipam ainda mais a esperança de um dia eles serem abraçados pela sociedade do país que escolheram.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731