Em cinco meses de um governo sacudido pelos solavancos de uma complicada conjuntura doméstica, em que os projetos da sua agenda são aprovados a fórceps, depois de árduas negociações com o Congresso, o presidente Lula parece só pensar naquilo: a política externa. Nesse curto período, ele se encontrou com mais de trinta chefes de Estado, deixando clara a intenção de ampliar o protagonismo do Brasil nas relações internacionais — e, de quebra, segundo pessoas próximas, concretizar o sonho dourado de encerrar o último capítulo de sua biografia com o Nobel da Paz.
A estratégia, para lá de duvidosa quando se põe na balança o peso da influência do país, tem mostrado pífio resultado e, não raro, produz uma visão turva e embaraçosas saias justas. A mais recente foi vestida em plena rampa do Palácio do Planalto: o que era para ser a consagração da liderança regional de Lula como idealizador e anfitrião de uma cúpula de mandatários sul-americanos degringolou perante a afetuosíssima recepção, com vasta rasgação de seda, do ditador Nicolás Maduro, promotor de execráveis atentados aos direitos humanos na Venezuela.
Um dia antes de todos os presidentes da América do Sul (menos uma, a peruana Dina Boluarte, impedida de deixar o país) se reunirem em Brasília e sem aviso prévio aos demais convidados, Lula tirou Maduro do ostracismo com um encontro a dois no Planalto. O objetivo da audiência, justificável do ponto de vista pragmático, era marcar a retomada das relações diplomáticas cortadas, por motivos ideológicos, pelo governo de Jair Bolsonaro. A Venezuela divide 2 200 quilômetros de fronteira com o Brasil e tem uma dívida pendente de cerca de 1 bilhão de dólares junto ao Tesouro Nacional. As transações comerciais entre os dois países, que já chegaram a 6 bilhões de dólares — hoje somam apenas 1,5 bilhão de dólares —, passam por um crucial acordo de fornecimento de energia para o estado de Roraima, interrompido com o corte de relacionamento entre os vizinhos.
Lula, no entanto, foi bem além dos interesses nacionais na farta distribuição de rapapés ao “companheiro” Maduro. No ponto mais chocante de sua fala, qualificou as críticas ao truculento regime bolivariano de “narrativas” movidas pelo “preconceito” e conclamou o ditador a reagir. “É preciso que você construa a sua narrativa. E a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que o que eles têm contado contra você. Está nas suas mãos virar esse jogo, para que a gente possa ganhar definitivamente”, afirmou, transformando o autor de barbáries em série — corrupção, perseguições e torturas — em vítima das circunstâncias. A reação, imediata, pôs o anfitrião na constrangedora situação de levar um puxão de orelha de seus convidados, ao ser lembrado dos horrores cometidos por Maduro e comprovados em relatórios de organismos isentos, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU. “Não se pode tapar o sol com a mão”, disse o presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, de centro-direita. “Não é narrativa. É realidade”, disparou o chileno Gabriel Boric, de esquerda, que não passa panos quentes nos desatinos do chavismo.
A necessidade de retomada das relações com a Venezuela é unanimidade no Itamaraty, mas a atitude de Lula foi um banho de água fria na expectativa de que o governo brasileiro pudesse influenciar Maduro a aceitar observadores internacionais e realizar eleições limpas no ano que vem, quando será candidato ao terceiro mandato. “Depois desse discurso, qualquer movimento crítico da diplomacia brasileira perde força”, lamenta um diplomata. “Lula tem optado por uma estratégia de exposição extrema, o que é arriscado porque qualquer passo em falso deixa a posição brasileira em xeque”, diz Paulo Velasco, professor de relações internacionais da UERJ.
A decepção se estende aos resultados finais da conferência. O plano inicial, torpedeado de cara, era aproveitar a onda que por ora tingiu de vermelho a maior parte das eleições na América do Sul para reconstruir a Unasul, fórum carregado de ideologia que se encontra praticamente inativo. Outra proposta girava em torno de uma moeda comum para substituir o dólar nas transações comerciais da região, medida fadada ao fracasso por desconsiderar as distintas realidades econômicas. Sem acordo quanto à pauta, a reunião chegou ao fim com a assinatura de um documento genérico, o Consenso de Brasília, que prevê a criação de um certo “grupo de contato permanente” de chanceleres tão relevante quanto uma comunidade de WhatsApp. “A conclusão morna é um lembrete de que a liderança regional é complexa e dificilmente se dará sob uma única visão”, diz Bruna Santos, do Wilson Center, de Washington.
Lula não desiste da ideia, já tentada em seus dois primeiros mandatos, de abrir caminho para uma terceira via composta de países do Hemisfério Sul que sirva de alternativa ao alinhamento com as superpotências. Um dos tetos de vidro da proposta é justamente o de dar aval a regimes ditatoriais, como aconteceu com Maduro e, antes dele, com o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega (na campanha eleitoral, Lula comparou a permanência inarredável do nicaraguense no poder às reeleições de Angela Merkel na Alemanha). Outra fragilidade é a capacidade de desagradar a poderosos e o desgaste que isso acarreta.
De posse de um plano inexequível de negociação de um cessar-fogo na Ucrânia, Lula irritou Joe Biden e líderes europeus ao afirmar que a União Europeia e os Estados Unidos prolongavam o conflito dando suporte militar a Kiev — a quem atribuiu parte da responsabilidade pela guerra. Além de receber o chanceler russo Sergey Lavrov, que raramente põe os pés em nações democráticas, despachou o assessor especial Celso Amorim para um encontro com Vladimir Putin em Moscou que não rendeu nem armistício nem prestígio. A expectativa de um primeiro contato pessoal com o ucraniano Volodymyr Zelensky não deu em nada. “Diplomacia exige moderação”, afirma o ex-embaixador Marcos Azambuja. “O Brasil tem interesses em todos os cantos do mundo e não pode desequilibrar sua bússola.” Perdido, Lula precisa achar seu norte.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844